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domingo, julho 20, 2008

Conto


Foi. Decidiu. Inteira. Passos lentos. Firmes. Segurando com o sorriso o vento no rosto. Chegando, foi abrindo logo as metáforas bobas, as garras presas no peito.

– É que eu sou...

Parou aí. Sem saber por onde continuar. Sem saber em que pedaço de si estaria a transitividade disso. Pareceu que o alcance dessa definição exigia que fosse ainda mais dentro do que já estava. Se não podia alcançar aquilo, não era. Então não era. E não podia dizer. Querer que dissesse já seria muito. Seria transpor, ir muito além. Um mergulho que ali não acabaria definindo sua vida, seu mais profundo e superficial eu, tampouco sua frase. Não podia dizer! Engoliu em seco. Depois engoliu quente uma parte de fora que confortava. O líquido escuro, quente, amenizava sua culpa de não ver através das coisas. Afinal, não era só ela que não era transparente. Uma superfície inebriante, enigmática.

E ele ali com aquela cara de objeto direto, substantivo próprio com artigo definido e tudo. Com aquela cara tão definitiva e aqueles olhos estranguladores de quem sabia que ela não era nada. E sabia tanto que achava que nem precisava dizer. E não precisava mesmo. Não era nada. Já não tinha como tentar não deixar transparecer também em seus olhos. Então todos os olhos diziam a mesma coisa. Cada um a sua maneira. Seu ar de tudo de um lado. O ar de nada dela do outro. Transparente. Ele denunciando. Ela admitindo. Assumindo a culpa. Se fora ali para justamente despir as roupas de seu espelho – mas agora fugia a coragem, queria até fugir os olhos, desfazer a firmeza com que entrara, trocar o que ele estava pensando até que não pensasse. Isso. Queria esvaziá-lo num grito. Colocar sua alma inteira ali na mesa e esmiuçá-la tanto e tanto até que não sobrasse mais por onde ele ficar inteiro. Tinha de existir um pedaço não imune. Precisava existir.
Já não sabia precisar direito (tampouco esquerdo) a quem se dizia ali tão acalorada e silenciosamente. Quis ficar do outro lado. Quis ter o olhar superior. Ou enviesado. Cega que fosse. E não estivesse mais sob os holofotes invisíveis da sua consciência. Quis até não ter dito nada nunca na vida. Que tivesse resistido ao ímpeto de ser do lado de fora sempre. Desde bebê recusado a repetir os parentescos incognoscíveis. As sílabas de onde se deduz os afetos completamente indizíveis, indecifráveis. Pudera então ter recusado também andar, seguir o caminho inevitável de todos. Não ir a lugar algum que lhe dissessem. Nem saberia compreender as linguagens. Seria imóvel. Com o tempo desprenderia-se naturalmente de ouvir. Primeiro, não decodificando. Depois, ignoraria por inteiro os sons. Então é que seria. Entre todos os sentidos jogados no lixo cuidadosamente, ficaria apenas o sentir. Daí saberia ser intransitivamente, transcendentalmente. Sem olhos ou espelhos. Sem ter de sair de casa para ir se dizer por aí. Sem ter de precisar as coisas inexplicáveis nunca. Pra ninguém mesmo. Sem, contudo deixar de precisar das coisas inexplicáveis. Tão indispensáveis o tempo todo. Para tudo. Dissociando o que levava consigo e tão dentro de si do reflexo externo que emprestava – já não dava! – aos outros a quem dizia-se. Viu também assim que não era só ele. Que não era só para ele. Que o que mostrava ali, gritaria ao mundo inteiro. Estava mesmo gritando ali. Platéia e tudo. Destoando da paisagem. E as pessoas ao redor jamais compreenderiam o poder que tinha de ser. O poder que tinha de não ser absolutamente como a viam ali. Em pé. Olhos cheios d’água. Frase engasgada no meio. Firmeza trêmula da maior atitude que já tomara na vida. E o gole descia queimando a garganta. Queimando a face antes artificialmente ruborizada. Ergueu imperceptivelmente a cabeça. Piscou lenta. A breve escuridão serviu como um suspiro longo que a coragem aparente – e tão verdadeira! – não permitia que desse ali. Resolveu guardar o segredo de sua recente descoberta numa sala escura e deserta de um prédio abandonado em seu espírito. E teve certeza.
Repetiu firme:

– É que eu sou!

E voltou.

sábado, julho 12, 2008

Só por hoje

Só por hoje eu sou vermelho sangue.

Só por hoje eu bato à sua porta vestindo salto alto, alguma coragem, álcool enrubrescendo as faces e peças fáceis de despir no meio dessas palavras fáceis de cuspir no meio de sorrisos leves e de graça. Só por hoje as palavras que você vai usar não importam. Só por hoje eu sou puro personagem. A roupa, o rosto já não escondem - é tudo a mais pura mentira invetada, com toda sinceridade.

Inventei com tanto carinho. Toma! Pra você de presente. Faça bom proveito. Pode roçar assim, bem de leve, a mão no meu peito que hoje eu até finjo incidente. Hoje eu tenho cara de indigente inesquecível, daquelas pessoam estranhas que passam por você na rua uma vez e ficam n'algum canto da memória, no mesmo em que fica o desejo.

Eu sou capaz, hoje, de passar pelo mundo na rua e não ver ninguém.

Hoje eu sou vermelho-intenso, vermelho-brega, vermelho-vulgar, vermelho-sexy, vermelho-ruiva-drogada-de-decote, vermelho-parado-na-esquina, vermelho-lingerie-vagabunda-de-renda, vermelho-liquidação-de-quinta-do-dia-dos-namorados, vermelho-excesso.

(Mas cuidado que vermelho envelhece também feito sangue, enferruja, enruga e fica amarronzado. Um vermelho recém acordado é feio, cuidado!)

Mas só por hoje eu fico hoje até amanhã de manhã.

quarta-feira, julho 09, 2008

Vai ver nem tanto assim

É que a loucura me esconde sob sua máscara do tudo é permitido e as vontades confusas confudem-se entre o desejo intenso de mergulhar de cabeça e o receio (in)constante de macular as imagens perfeitas.
Mas as cenas têm de ser espontâneas...
Não!
Tire essas palavras vulgares da boca, pois elas não lhe cabem. Simplesmente não combinam com o penteado, destoam como cores complementares: há de se ter muita ousadia para usar. Nâo vê? Que elas misturam lados distintos das coisas.

É que despir a maquiagem é mais difícil do que as roupas e minha alma já não fica nua há muito tempo. Por isso tem medo de que, caso a toquem, venha a público o tamanho de sua aspereza. Os meus gestos também não são crus há tanto tempo... E todo esse excesso - "no meio desse excesso, no meio desse excesso" - no meio, nas bordas, nos eixos, nas arestas, transbordando artificialidades desde sei lá quando. No fim das contas, esconde apenas o medo prosaico de ser prosaica.

Já não foi inteira. Já não sabia decidir inteira. Uma parte queria pensar no antes antes do depois, antes do casual arrependimento, da falta de coragem de assumir as vontades escondidas atrás da amnésia alcoólica.
E a parte maior queria amanhecer ali, entre sussurros leves, adormecendo de leve, um carinho de leve...

É que não cabe, como não cabe na boca. Como não couberam as palavras de ensaio, os termos comuns.