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terça-feira, dezembro 28, 2010

Estrada aberta

Mais uma dose que alguém põe no copo sem eu perceber. Mais uma série de coisas que se anotam em listas sequenciais sem que eu tenha meios de cumprir. Mais uma ampulheta que alguém gira sem pedir permissão, a vida roda e eu aqui sendo a mesma-com-o-prazer-de-ser-o-mesmo-mas-mudar. De casa, de caso, de coisa, de trabalho, de roupa, de afeto, de família, de trilha – universo em expansão.

A estrada, o mar, a porta, a vida, tá tudo aberto esperando o novo entrar sem pedir a licença que já foi dada ao que vier pro bem. Meio macumbeira, meio supersticiosa pelo encontro de consoantes que amo e pelas vontades de ter algo em que me agarrar (sempre!).

Um descampado grande e verde para além das janelas. O calor dissipa as nuvens, o verão chove todas elas e é quando o sol se abre mais limpo, forte, intenso para quem puder aguentar e dele se alimenta.

Novos cenários. Novos horizontes. Novas pontes que vamos construindo, tijolo a tijolo, pedaço a pedaço. Com a calma e a pressa certas para ver surgir e poi passos firmes, um de casa vez, mãos coladas.

Desmanchar cenários, construir fronteiras borradas, borrar os batons, desarrumar a cama e os cabelos, esvaziar o copo em pequenos goles cheios de vontade prudente de ser um só. Entendi que não podemos atropelar os ventos nem esperar que eles mudem de direção. A gente busca o meio termo entre se deixar levar e leva-lo um pouco com a gente.

E nunca antes (h)ouve tanto mar aberto.

domingo, dezembro 26, 2010

Deixei a cama desforrada para ver se ela guarda por mais algum tempo o teu cheiro. Deixei a vida um pouco mais desarrumada esperando que venha ao menos reclamar das vezes que não preservo os segredos. Deixei mais longe as coisas que queria perto. Deixei tocando no rádio a poesia que espero que vá me dizer no ouvido. Está tudo planejado para a hora que você chegar de surpresa.

Guardo uma certa distância da qual fico olhando no emaranhado dos lençóis o desenho do teu corpo. A memória desdobra em expectativa. A canção em sussurro.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

Tudo diferente na noite que antecede o fim

Agora - tão pouco tempo depois - o mais esperado seria aquela angústia com o cheiro ainda presente, aquele vazio na pele fervida, aquelas músicas grudadas em algum lugar da cabeça. Mas agora, tão pouco tempo depois, é só essa sensação de que ficou faltando alguma coisa. De que o dia seguinte se confunde com a véspera. Como pode o desespero converter-se em vazio assim fácil e não trazer nem perto de junto a sensação de alívio, dever cumprido ou coisa que o valha.

As borboletas se foram da sua cabeça, nem mais um tipo de cor amontoando as ideias.

Agora essa vontade de que fosse menos, de que o antes tivesse sido muito menos intenso para ter deixado alguma esperança maior.

domingo, dezembro 12, 2010

Inacabado

Era para não ter sobrevivido, mas com o tempo a gente aprende que dá para superar até a falta de tempo. Em algumas situações desistir é o que equivale a fazer o melhor possível. O mantra mais besta, a gente faz os maiores problemas, mas tem hora que uma boa música e uma contagem mais longa dão o saldo positivo do mar vermelho - ele não se abre e eu continuo sem aprender a nadar.

Um passo de cada vez até o cadafalso. Ainda que fique para o próximo inverno, se acelerar muito posso não conseguir pisar no freio depois - e sem nenhuma vontade de aprender a dirigir, vai que cai uma chuva daquelas um dia desses... Quando o desespero vira uma constante, a gente aprende a viver com ele também. Mas não é como um dragão que a gente alimenta com a nossa magia, é um moinho. E se ele triturar os meus sonhos mais mesquinhos, hão de ficar outros com algum valor a mais.

Que bom que ainda é cedo, por mais tarde que seja. Que bom que existem muitas temporalidades e pode ser uma opção de vida, além de teórico-metodológica escolher com a qual trabalhar. Esquece o curto, antes que exploda.

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Insome

Olhar cego na maior parte do tempo.
Boca fechada na menor face das horas
Náusea engastada no buraco
mais fundo do estômago
O âmago amargo
O disfarce da origem
Origami se desdobra
para quem sabe ver
além da forma

Ainda que com olhar cego
Com ego agourento
e cadências flutuantes.

Você lê
Eu escrevo
Ponto.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Insônia involuntária e cansaço

Era para estar pronto e não para ter esse peso todo ainda aqui nos meus olhos. Sobre as bolsas arroxeadas e semi-cerradas, uma repetição ritmada - tomara que não venha ninguém. É tão denso, tão revirado, que dá vontade que tivesse tudo pronto, talvez mesmo um manual, uma citação pronta pra resumir. Faz parte de ser uma pessoa complexa não se traduzir com qualquer frase de efeito. Talvez seja essa a hora de tomar vergonha na cara e arregaçar as mangas que já estão maduras no pé.

Não vai ter cenário pronto, não tem texto. Pode ser melhor ficar em silêncio, me olhar com aquela ternura de quem já partilhou um sofrimento. Não vai estar em modos de pesquisa instantâneos e modernosos. Não vai estar em páginas amareladas ou virtuais. Não está em nenhuma trilha sonora. Não tem a ver com brigas banais ou em vontades de levantar bandeiras e brigar com o mundo, virar morais de ponta cabeça. Não se trata de nenhuma genialidade.

É mais simples, original e doloroso. Trata-se de viver cada dia. Acordar todas as manhãs. Saber lidar com casa pequeno obstáculo sem titubear. Disfarçar as lágrimas e entender que o mundo é para gentes grandes e o único jeito aceitável é crescer. A dor da alma se alargando um mílimetro que seja é mais intensa que o cubo daquela dor nos ossos de anos atrás. Minha alma tem estrias esbranquiçadas do último ano que se fecha com muito mais pânicos do que tinha no início.

Os ciclos inventados fazem a minha cabeça girar de ressaca das coisas que eu não li em todo esse tempo que passou voando. Não tem mais muito formato. Os meus gigantes ventam muito e o fracasso eu não sei se sou capaz de suportar nos ombros.

Uma improdutividade transbordante. Todas as angústias gritando para virarem palavras e eu ainda me escondendo atrás de umas bobas citações - "Eu deveria cantar"*.









* ABREU, Caio Fernando. Onde Andará Dulce Veiga? Algum lugar, alguma editora, última ou primeira página, não sei dizer.

Trecho da peça SARAU DAS 9 ÀS 11 (Caio F.)


BABY — Quem se importa com o meu olho escancarado e cheio de
desencanto? Quem, entre todos vocês, estenderá a mão para passar no
meu cabelo? Quem cantará um acalanto para a minha insônia?

DEBORAH — Quero encontrar pelo caminho um cogumelo de zebu.

MADAME — Fiquei sabendo outro dia que minha madrinha, a
poetisa Florbela Ortigão, tem agora que cozinhar a sua própria comida.
Não, eu não suportaria presenciar uma coisa dessas. Nunca mais
retornarei a Taormina. Não quero ver as paredes brancas de suas
casas cobertas de inscrições em vermelho e negro: “Abaixo a tirania”,
“Morram os opressores”.

MONGE — O segundo anjo tocará a trombeta — e como um monte
de fogo lançar-se-á ao mar, e a terça parte do mar mudar-se-á em sangue,
e perecerá um terço das criaturas que vivem no mar, e um terço
dos navios irá a pique.

DEBORAH — E descansar os meus olhos no pasto, descarregar
esse mundo das costas.

BABY — Não espero nenhum olhar, não espero nenhum gesto, não
espero nenhuma cantiga de ninar. Por isso estou vivo. Pela minha absoluta
desesperança, meu coração bate ainda mais forte. Quando não se tem
mais nada a perder, só se tem a ganhar. Quando se pára de pedir, a gente
está pronto para começar a receber. O futuro é um abismo escuro, mas
pouco importa onde terminará a minha queda. De qualquer forma, um
dia seremos poeira. Quem é você? Quem sou eu? Sei apenas que navegamos
no mesmo barco furado, e nosso porto é desconhecido. Você tem seus
jeitos de tentar. Eu tenho os meus. Não acredito nos seus, talvez também
não acredite nos meus próprios. Não lhe peço que acredite em mim.

MADAME — Tivemos todos que fugir em debandada. Muitos, na
pressa, deixaram para trás uma avozinha cega, um irmão entrevado,
uma tia louca. Tivemos que vender nossos automóveis de luxo, nossos
iates e palacetes. Os industriais de Santa Lucia tiveram todos os seus
bens confiscados e as contas bancárias bloqueadas pelo governo rebelde.
Soube também que faliu a revista Grand-Monde, especializada na
crônica da vida mundana. E a famosa confeitaria Garcez & Bernard,
cuja mais famosa especialidade eram os docinhos conhecidos como
“ossinhos de Santa Catarina” — a confeitaria, dizia, teve as suas instalações
transformadas num depósito de armamentos.

MONGE — O terceiro anjo tocará a trombeta — e cairá do céu um
grande astro, luminoso como um archote, e virá tombar sobre a terça
parte dos rios e das fontes d’água. Chamar-se-á “absinto”, esse astro.
Converterá em absinto a terça parte das águas, e muitos homens morrerão
dessas águas, porque se tornarão amargas.

BABY — Quanto a mim, acredito nas plantas, nos animais. Acredito
nos astros, nas águas. Acredito no vento que sopra da banda do rio quando
o sol acaba de se pôr. Acredito na pedra bruta, na areia seca.

DEBORAH — Eu só quero fazer parte do backing vocal, e cantar o
tempo todo: shoobedoo-down-down, shoobedoo-down-down.

MADAME — Tudo mudou. Não me iludo. Tudo acabou.

MONGE — O quarto anjo tocará a trombeta.

MADAME — E o que foi não voltará mais a ser. Ainda hoje tive a
compreensão final.

MONGE — E será ferida a terça parte do Sol, a terça parte da Lua
e a terça parte das estrelas.

MADAME — Li no jornal que os imortais da Academia de Letras,
Ciências e Artes foram todos mortos.

MONGE — De maneira que se lhes escurecerá a terça parte do céu,
e deixará de resplandecer a terça parte do dia e da noite.
MADAME — Fuzilados.