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terça-feira, maio 24, 2011

Oração da Banda mais bonita da cidade

Meu amor essa é a última oração
Pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na dispensa
Cabe o meu amor!
Cabe em três vidas inteiras
Cabe em uma penteadeira
Cabe nós dois
Cabe até o meu amor
Essa é a última oração pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na dispensa
Cabe o meu amor!
Cabe em três vidas inteiras
Cabe em uma penteadeira
Cabe essa oração

quinta-feira, maio 19, 2011

Sonho de uma flauta (O Teatro Mágico)

Nem toda palavra é
Aquilo que o dicionário diz
Nem todo pedaço de pedra
Se parece com tijolo ou com pedra de giz
Avião parece passarinho
Que não sabe bater asa
Passarinho voando longe
Parece borboleta que fugiu de casa
Borboleta parece flor
Que o vento tirou pra dançar
Flor parece a gente
Pois somos semente do que ainda virá
A gente parece formiga
Lá de cima do avião
O céu parece um chão de areia
Parece descanso pra minha oração
A nuvem parece fumaça
Tem gente que acha que ela é algodão
Algodão as vezes é doce
Mas as vezes né doce não
Sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
O dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar
Hum... E o mundo é perfeito
Hum... E o mundo é perfeito
E o mundo é perfeito
Eu não pareço meu pai
Nem pareço com meu irmão
Sei que toda mãe é santa
Sei que incerteza traz inspiração
Tem beijo que parece mordida
Tem mordida que parece carinho
Tem carinho que parece briga
Tem briga que aparece pra trazer sorriso
Tem riso que parece choro
Tem choro que é por alegria
Tem dia que parece noite
E a tristeza parece poesia
Tem motivo pra viver de novo
Tem o novo que quer ter motivo
Tem aquele que parece feio
Mas o coração nos diz que é o mais bonito
Descobrir o verdadeiro sentido das coisas
É querer saber demais
Querer saber demais
Sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
O dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar
Mas sonho parece verdade
Quando a gente esquece de acordar
E o dia parece metade
Quando a gente acorda e esquece de levantar
E o mundo é perfeito
E o mundo é perfeito

sexta-feira, maio 13, 2011

Estava fora do ar e as outras obrigações escrivocráticas trazem sérias tendências de uma grande produtividade nos próximos tempos. Tudo um lixo, é claro. Mas no fim, se peneirar exaustivamente, quem sabe.
Juntando letrinhas mesmo que seja assim nada his-to-rio-grá-fi-cas. Não que as outras tenham chance, menos ainda. Mas fica, sempre fica a vontade. O grande objetivo que na hora agá vem alguém e diz que não tem a menor importância qualquer coisa tá bom importante mesmo é. Eu sei bem, não me enganam, não adianta nada porque depois, bem depois, depois de tudo - todas as noites em claro, todas as frases sofridas, todo o esforço, leituras, releituras, problematizações e todo o resto - alguém vai dizer que ainda não é bem isso que, daqui a um tempo, algumas titulações, maturidade intelectual e sei lá mais o quê.
Enquanto isso escrevo. Uma página por dia. Meta inicial e já demasiado endividada.

segunda-feira, maio 09, 2011

"Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é?" (Trecho do conto Para uma avenca partindo, de Caio Fernando Abreu, presente no livro O ovo apunhalado).

sexta-feira, maio 06, 2011

Diário de um prisioneiro - parte II

Há também os períodos em que, sem nenhuma possibilidade de escolha, chega uma espécie de caminhonete fechada. É sempre à noite, reconhecemos pelo barulho do motor. Com uma batida ensurdecedora na grade, alguns de nós são acordados - a maioria não dorme quase nunca ou tem aquele sono-sonâmbulo de quem está sempre em alerta, para esses, a proximidade do motor faz as vezes de barulho-desesperador-no-meio-da-noite provando que não é mesmo seguro dormir - e convocados para entrar na parte traseira do automóvel.

Geralmente somos cerca de vinte num espaço onde não caberiam cinco pessoas bem acomodadas, mas o balanço da estrada chega a embalar um descanso para os que não são marinheiros de primeira viagem. Depois que você descobre que não vai morrer (e mesmo se morresse, não faria grande diferença) consegue aproveitar as golfadas de ar fresco que entra pela pequena janela. Os golpes de ar trazem uma proximidade com sensações prazerosas já há muito esquecidas.

O destino se revela quando o sol já está quase amanhecendo - e traz consigo alguns dias de trabalho forçado sob o sol quente.

quinta-feira, maio 05, 2011

"Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos conta, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende?" (continuação do conto Para uma avenca partindo, de Caio Fernando Abreu, presente no livro O ovo apunhalado).

terça-feira, maio 03, 2011

Do meio de uma loucura estranha alguém surge e devassa a página límpida. Um timbre percorre por punição os ouvidos. A contradição dos olhos à espreita quando os dedos devem voltar-se em outra direção. Sentido. Idiomática. Círculos irônicos e concêntricos. Um certo fundamentalismo pasmo querendo aproveitar a deixa e despir-se em máscaras das mais floreadas. Toma: uma flor e uma prosa à guisa de poema:

"Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio?" (Caio Fernando Abreu, trecho do conto Para uma avenca partindo, presente no livro O ovo apunhalado).