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terça-feira, janeiro 29, 2013

Como quem compra pão


Ao som de Sentidos (Zélia Duncan).

Paralelas que cruzam portais. Alguma preservação que pode ser censura. A sinceridade que nunca é desmedida, muito pelo contrário. Os turnos trocam. Os porteiros pensam sabe-deus-o-quê e eu vou levando os dias sem parar para poetizar. Não, não é que seja a tal poesia. Tem hora que não é dela mesmo que se carece. É algum tipo de balanço que é necessário às vezes, mas se permitem a repetitividade, ainda prefiro escolher o balanço de parquinho com seu ir e vir ambíguo em alta velocidade no meio da chuva.

Mas tem que contabilizar para seguir em frente. Transformar em palavras, dar significado, compreensão. Ajeitar para cada coisa seu lugarzinho devido na estante: o de lembranças-bibelôs sonhando com bonecos de gesso que conheçam o kama sutra.

Meço com fitas coloridas de senhor do Bonfim os cílios que se abrem em olhos tão famintos cuja lembrança desperta pensamentos vestidos sempre em vermelho sangue.

Contabilizo com tecidos de cortina a quantidade de pontos que pode ter um sorvete de flocos, embora tema o conforto das conchas mesmo distantes do barulho do mar.

Ensaio vinganças, ativismos, copio cenas de filmes que ninguém nunca viu.

Defino minha vida pelo sexo. Sexo que eu estudo. Sexo que eu desencavo nas pessoas cujas vidas já não me pertencem e eu bem sei que nunca pertenceram.

Conto meus dias pelas trepadas e ouso dizer estou na idade. Abro meus olhos pro mundo e encontro vez ou outra meu reflexo em outros pares diversos. Olhos que instigam. Olhos que investigam o prazer a fundo. Corpos não são mesmo vídeo games, afinal. Trepo para transformar em conto. Só sexo é escrita? Amor nunca? Paixão às vezes. Palavras encardidas e bobas, além de temporariamente fora do vocabulário. Fujo de qualquer coisa que me queira perto demais. Quero qualquer coisa que me queria longe. Procuro farpas, invento desculpas, provoco uma briga e digo que não estou.

Estou no reflexo dos seus olhos e nos meus que embaçam e fecham para sentir melhor as especificidades de cada pessoa. É muito mais que o cheiro da curva-do-pescoço com o ombro. A textura da pele nunca é igual, assim como o cheiro do sexo, o ritmo da língua.

A vulgaridade de sempre me cerca. Contudo, agora, creio-me com poros mais atentos ao que a experiência reserva. Percorro seus meandros, me deixo levar. Mais ainda exibo na janela os dentes e rosno para quem ousar passar da página quinze.

terça-feira, janeiro 15, 2013

Inclassificável

Ao som de Medo de Amar (Vinícius de Moraes)

Um desejo que é meio ocasião, meio discografia.

É a voz da Elis que você procura no cheiro do meu pescoço e só encontra um verso estranho, apesar de repetido à exaustão.

É a visceralidade do Ney Matogrosso que você quer no gosto do meu sexo, mas não sabe que é só esse-gosto-molhado-que-as-pessoas-têm-quando-tiram-a-roupa e que a sede de outro corpo é só essa sede-que-ninguém-mata.

Por maior que seja o tesão musical, não vão surgir nos arrepios da minha pele as palavras de Chico.

É só sexo.

Coisa de vagabundos perdidos no fim das noites de sexta que viram sábados quando a gente vira do avesso.

É só sexo.

Não transcende melodias, não estoura em metáforas, não explode em timbres - nem sequer mata a sede (apesar de subverter uma ou outra convicção).

Só vira a página, o disco e muda a roupa que não serve mais.

sexta-feira, janeiro 04, 2013

Cheiro de pele


Ao som de Num dia (Arnaldo Antunes)


Se o cheiro fica no corpo
depois de um abraço,
o jeito é lavar a pele.
Esfregar um por um os poros
e deixar escorrer
os cheiros, os suores, os plurais
mesmo se forem bons
até voltar pra minha solidão.

Até voltar pr'esse cheiro que eu finjo ser nenhum
e que esconde também meus pedaços de vida
que eu deixo escorrer em abraços,
misturar em odores,
refazer nos corpos que se trocam.

Até minha pele voltar assim:
(mesmo sem nunca ter ido a nenhuma parte)
pronta para dar e receber novos cheiros
que depois a água torna a levar
renova em novos ciclos
em rimas bobas
em poças
poços
mares
e torneirinhas.

A gente nega, esfrega e rega
a pele de outras vidas
que dá pra inventar.

Leva, lava e troca por sabão,
colônia, essência
e por fim
o cheiro limpinho de roupa de cama
(porque nem sempre é cheiro de gozo que povoa os dias)

Não é nos poros que eu levo os pedaços das gentes que me acompanham
Vale mais o contorno do abraço que meu corpo sabe e reaprende a cada um