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sábado, fevereiro 07, 2009

Conto de fadas


Acostumada ao sabor áspero e denso do álcool puro, chegava a ficar enjoada daquelas cores todas. Daquelas frutas todas. Daquelas nuances adocicadas estampando sorrisos tão artificiais quanto os corantes nas pessoas. Não por causa da embriaguez, mas pela combinação carnavalesca. Não condenava os sorrisos. Pelo contrário, chegava a ter vergonha de si mesma, de seus pensamentos arrogantes dentro da noite fresca de verão.

Dois rapazes de um tom moreno-avermelhado de sol tocavam umas músicas de três acordes em desafinados violões pretos tipo cult bacaninha. Fortes, suados e cantando fora do tom. A cena só não era mais deprimente porque graças a deus não havia ali uma fogueira. Mesmo assim, estavam todos sentados em roda, como se houvesse uma bem no centro. Lá menor, sol maior, ré menor. Deprimente.

Um rapaz novinho e bonitinho, cabelo raspado, bochechas rosadas pelo álcool, tirou do bolso uma gaita e interferiu desencontrado naquela cena de filminho de verão. Alice sorriu meio de alívio, meio de admiração pela ousadia do garoto. A situação cômica criada a fez pensar na possibilidade de guardar seu costumeiro ar amargo e não contaminar mais aquela noite. Apesar de tudo, bonita, lua cheia, barulho de mar e tal. Céu limpo. Vento morno soprando no rosto. O hálito quente de um grande deus que só aparecia nas noites de verão para derreter o espírito.

Levantou aliviada por se desvencilhar da roda patética. Olhando de fora, de cima, decidiu que não tornaria a fazer parte daquilo. Percebeu na estampa da canga onde estivera uma grande mandala vermelha desenhada. Sorriu irônica e querendo acreditar nesse prenúncio. Queria estar bêbada, pensou exatamente com essas palavras andando em direção ao toldo sob o qual um casal preparava aquelas coisas excessivamente doces e coloridas.

O rapaz de cabelo preto espetadinho com gel fazia lembrar as personagens de Caio Fernando Abreu. Roupa preta e tudo. Sua alocação nos anos dois mil só era denunciada pelos grandes alargadores de metal. Alice se distraiu olhando demorado o espaço vazio no meio destes.

A mulher ao seu lado parecia entretida nos malabarismos que fazia com a coqueteleira rosa fosforescente. Era mais velha que o garoto, com certeza era. Talvez perto de vinte e cinco. Olhos de um azul muito claro contrastando com o preto do excesso de delineador e rímel. Pele muito branca, criaturas da noite os dois. Cabelos pintados de preto, bastante lisos, presos num coque desfiado. Vários piercings desses com bolinhas coloridas na sobrancelha, nariz, orelha, língua, sabe-se lá mais onde. Camiseta branca muito justa, um pouco transparente. Ofereceu um Sex on the Beach que a princípio Alice entendeu como uma proposta. Riu da própria idiotice quando a outra estendeu o copo. Pareceu um sorriso educado. Líquido colorido e doce desceu enjoativo. Tomou apenas um gole prevendo o tempo que ficaria sem saber o que faria com aquilo.

Quando pensava sem estímulo no copo e na roda e no quanto não queria nenhum dos dois, a viu. Na areia, bem perto do mar, distante daquela aglomeração ridícula, agachada quase como que de joelhos lá onde a água batia fraca, num encontro de marolas vindas de várias direções. Cabelos acastanhados, algumas mechas dourados pelo sol, bem compridos, caindo pelo ombro até a frente do corpo, cobrindo o contorno dos seios e deixando à mostra uma mandala muito colorida, tatuada logo abaixo do pescoço. Se crescessem asas exatamente daquele círculo, poderia ser uma fadas dessas de conto infantil.

Alice se aproximou com reserva e timidez. Parou de pá ao lado dela. A maré é suave a esta hora..., arriscou pensativa tentando disfarçar o nervosismo, que a outra logo percebeu pelos pés inquietos encostando alternadamente na areia. As unhas e os dedos se deixando afundar de leve, o calcanhar meio desequilibrado.

A fada estendeu a mão aberta sobre o espaço ao seu lado num gesto largo de convite. É bonito de ver, respondeu quando Alice sentou. A água toca na gente devagar, parece que com respeito.

As duas ficaram algum tempo em silêncio, sentindo as pequenas ondas geladas tocarem seus pés. Na noite abafada, o frescor do mar era um alívio. A conversa logo foi retomada no mesmo tom: bastante leve, como o marulho que reverenciava a escuridão branca sob a lua. O desejo pairava no ar junto com o vento morno e seco que as rodeava. O cheiro de sal libertava Alice do adocicado irritante dos drinks de antes. Enquanto inspirava fundo a maresia, sentiu o copo ainda cheio em sua mão. Apoiou-o na areia torcendo para que não derramasse. Nesse gesto, as mãos se esbarraram quase sem querer apesar da vontade muita. Antes que soasse uma cantada barata, Alice explicitou sua intenção percorrendo a tez branca daqueles braços com a ponta dos dedos. Quase sem tocá-la de fato, terminou no pescoço, apertando a nuca por dentro dos cabelos e trazendo-a para muito perto de si, a ponto de as respirações quentes e ofegantes confundirem-se no vento morno. O beijo também era morno, macio, longo e passível de vários adjetivos incapazes de definir a sinestesia daquilo.

O calor amolecia os pensamentos. Um risco maior do que se julgava capaz. Foi o máximo que conseguiu definir, mais com orgulho de si mesma do que com o medo que esperaria sentir se estivesse esperando algo. Aquela boca era doce como uma lembrança antiga, com a suavidade forte e marcante que a doçura deve ter, sem cores fortes, vodka ou nomes estadunidenses. A fada era doce da mesma forma que o mar era salgado. Aquela antítese lhe aprazia os sentidos. Não quis saber ao certo se era uma recordação, um sonho ou apenas uma saborosa noite de verão. Sabia do cheiro fresco de xampu e sal nos cabelos dela, do gosto rosado de carne fresca, da brisa suave sob o céu estrelado nas noites mágicas.

Sentiu que a outra permitia que tocasse não apenas o corpo quente, mas também sua alma. A mandala, que agora Alice via bem de perto e podia sentir com as mãos e os lábios, era uma espécie de marco. Tatuara após o término de um relacionamento. Melina, nome de fada mesmo. Libra com ascendente em câncer. A leveza do ar na profundidade da água, lembrava alguma música. Segundo a definição da própria, equilíbrio sujeito a fundo do poço. Soou patético, mas Alice achou meigo.

As peles, de um branco reluzente sob o luar, tocavam-se ávidas, num abraço terno. O barulho do mar embalava a sensualidade e o tesão de ambas. Melina tinha seios pequenos, róseos, quentes sob a brisa fresca. Alice sentia no arrepio da pele a vontade de ficar ali para sempre.

A essa altura já ignoravam que existisse mais alguém na praia, a música distante pouco se ouvia, a madrugada adentrava sem que sentissem. Os sentidos concentrados apenas no desejo do outro corpo, na vontade do prazer único que é o prazer do outro. Alcançado por aquela mescla inigualável de mãos, línguas, afagos, peles... Precisam de ajuda aí? A voz brusca cortou a magia da cena, como de abruptamente desligassem uma linda música. Gargalhadas certamente bêbadas, alguns comentários que, no susto, Alice não conseguiu entender. Alice abriu os olhos e viu que eram vários. Tentou amarrar de volta a blusa de Melina, mas já era tarde.

O gosto doce de carne fresca em sua boca tornou-se sangue no primeiro soco. Cheiro de suor sujo misturado com álcool. Alice se debatia tentando ao menos olhar para os lados, queria que houvesse algum modo de proteger Melina. Com o braços imobilizados por um ser asqueroso sobre si, o máximo que conseguiu foi encontrar uma das mãos dela, cravada na areia de desespero. Segurou com força, ou o que restava disso.

Uma outra mão, grande, áspera, suja do sangue que supunha seu, cobriu sua boca para abafar os gritos, impedindo que olhasse para Melina. Segurou com mais força a mão da fada, ouvindo os urros de dor e medo ainda que abafados. No desespero, fechou os olhos. Tentando acordar do pesadelo talvez. Em vão. Percebeu quando suas forças se esvaiam por completo e chegou a ansiar que desmaiasse. Sentiu sua própria mão afrouxando o toque na dela.

Acordou com o dia claro. Sol forte batendo no rosto. O mar batia fraco mas lancinante na pele lanhada, arranhada. Aos poucos foi percebendo os vários hematomas. Sentia todo o corpo como em carne viva. Enquanto a alma estava seca, rasgada, destroçada. Olhou em volta. Ninguém. A pergunta do que teria acontecido àquela fada ficaria arranhando imperdoavelmente sua alma ainda por muito tempo. Sem resposta.