Páginas

terça-feira, julho 31, 2012

Para se ler ao som de Mergulho.

Bicho ferido fere. Grita, guincha, esperneia e esparrama seu sangue enquanto se debate e lanha ainda mais a pele nas paredes das grades. Quem se debate é afogado, sussurra em seu ouvido uma voz distante, um dos muitos fantasmas que atormentam as madrugadas frias que não cabem nas horas infinitas e nascem em manhãs cálidas, frescas, às vezes até ensolaradas.

Bicho ferido quer arrancar sangue alheio. Ferve os olhos de vingança enquanto observa acuado e imóvel os dedos que mergulham fundo em tuas feridas hemorrágicas. É preciso tempo e solidão para lamber cada uma delas com o devido cuidado. É preciso cicatrizar e esquecer o quanto doeram antes de colocar a cara à tapa.

Bicho ferido quer mesmo é chafurdar na dor e mergulha em qualquer possibilidade de. Gosta de sentir as patas enlameadas em poça de sangue, chapinhadas da lama do poço. Bicho ferido sabe que, se for pra doer, sempre vale estender a outra face. Bicho ferido confraterniza versos bíblicos como se fossem poesia entre copos de cerveja às quatro da manhã de sábado - não sem mesclar o embasbacamento cristão com lembranças de sórdidos pecados.

Bicho ferido quer que lhe lambam o ego, já colocou há tempos tua jaula ensanguentada na vitrine e vez em quando um visitante do zoológico joga um pedaço de fruta. Ele faz piruetas enquanto deseja que não seja banana.

Bicho ferido pode demorar um pouco para perceber que abriram a jaula, pode achar mais confortável ficar um tempo sentado olhando como fica diferente a paisagem sem as grades no caminho. Lambe o sangue do chão antes de levantar para evitar novas quedas. Certifica-se de que aos poucos as feridas fundas, inflamadas, vão criando casca. Ainda dói se um desavisado tocar, isso ainda o fará guinchar de dor, mas já é possível vislumbrar cicatrizes charmosas em seu lugar. Por isso, aos poucos o bicho espreguiça o corpo, estica as patas, fareja a insegurança do terreno e dá os mais pequenos passos até ultrapassar os limites da porta. Dali, uma pequena esticada no pescoço faz com que o vento bata no rosto. Dá aquela ardência da pele ainda em carne viva e junto aquele frescor de saber que toda bofetada nos dá um rosto novo. A passos tímidos rompe as grades e se entrega ao galope veloz e inconsequente de quem só quer dar com a cara no primeiro muro.



sexta-feira, julho 27, 2012

É preciso fé cega e pé atrás

Para se ler ao som de Dois perdidos (Filipe Catto).


As citações antigas ajudam a povoar a entrega mais recente, o medo enorme de se jogar depois que já jogou e já caiu e já está tudo assim espalhado no chão. O silêncio é o medo de exteriorizar, de colocar em palavras, de ouvir em alto e bom som isso tudo o que a gente já sabe mas finge que pode minorar e controlar marcando prazos de distância. Dá para não interferir. Desde que não fira, desde que não atrapalhe, desde que mande um ou outro sinal de vida para sabermos que haverá uma tarde livre para. Desde que se saiba proteger as pessoas que devem ser protegidas.

O corpo fica mareado, sentindo o ritmo do teu corpo no meu mesmo depois que você se afasta. A surpresa não é uma questão de gênero, é uma questão de surpresa. É sentir na ponta dos poros um desejo já tão inimaginável, um desejo que não se vê nos olhos - e nem poderia - mas que encosta a ponta dos pelos e pasma e gruda e sua e soa e toca e geme e treme e suga e queima e revira e insinua e veste e despe e cantarola e relembra frases antigas e se perde e gruda na voz e soma outras mil conjunções aditivas que perambulam pelo ar inebriado do prazer mais simples.

Deixa marcas que qualquer um, qualquer outro, qualquer tempo viraria raiva. Mas fica, cobre de maquiagem e lenço travestido dessa elegância que a gente compra barato nos camelôs do centro. Vou construindo imagens do que quero de mim, só que perdi a decência, o time, o pudor, o bom senso. Perdi o pé atrás que me sabia nos objetivos claros. Perdi a noção do auto-conhecimento e me deixei cair nas armadilhas mais previsíveis. Achei de volta o caminho de casa e uma cesta bonita de pães. Fico me permitindo prazeres e tédios alternados. Incorporo esse gesto sublime e blasé de quem já sabe em que pé finca e em que fim dá. Começou com a cena perfeita, a porta aberta, teu cheiro no vento parado e teu gozo no corpo. Deixou de ser só mais um conto pra virar essa vontade que não tem outra palavra. É corpo, é físico. Por isso há-que respeitar. Há-que mergulhar de cabeça, tronco, membros - deixar sentir a pele que estremece e revira e entrega em lágrima imperceptível que denuncia.

Agora espero e fico desesperada de tanto esperar. Percebo os mesmos erros já cometidos e me pego achando tudo assim diminutivo, me vejo vendo beleza nas árvores da estrada e me perco horas a fio nas pontas das folhas que nunca tornarei a ver. É fio d'água.

domingo, julho 22, 2012

Dedicatória

"Para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba".
 (Paulo Mendes Campos)

Na falta de coragem de tirar de mim o sangue, me perco no seu olhar-abraço-voz. Nem sei se é quente, rápido que foi. Devo admitir que não deu tempo de planejar perdições. Daria tempo de despertar sonhos, se eu ainda soubesse. Qualquer distração parece que serve. Dito assim parece que te desprezo. Saiba que não é o caso. O caso é que as frases curtas, re-pe-ti-tivas, mal conectadas, escondem uma admiração distante. Uma inveja funda que se confunde em desejo. Um desejo que não é só do teu corpo. É da tua vida que quero em posse e quero em vida. Quero vampirizar tua ânsia de paixões, sua desenvoltura para pedir de mim mais do que posso dar e menos do que gostaria.

Eu me abro demais. Sempre me abro demais e perco completamente os limites do senso. Eu me publico. Eu sempre faço manchetes dos meus sentimentos para ver se os crio. Pra ver se alguém compra o que fica ali exposto na banca. Às vezes funciona, às vezes vira caso de polícia. Minhas letras são garrafais, mais finjo fingir que não. Dissimulam escrúpulos num gesto tão falso como quando eu acendo um cigarro.

Você olha e pede um abraço em agradecimento por eu ter feito exatamente o que você pediu. Pode ter pedido com o inconsciente até, mas eu sou boa a esse ponto em interpretação. Te dou um livro, te leio uma página, te abro minha alma que, mesmo sem ser grande coisa, é o que de mais fundo tenho para te oferecer. Quero te oferecer mundos que você desconhece, quero te dar um leque de sabores de vida pra você provar e depois escolher feito sabor de sorvete. Quero te dizer que o mundo é grande, que as melhores sensações não estão só nas páginas dos livros, que você pode pegar a estrada e sentir o vento no rosto afastando seu corpo das raízes empoeiradas, dos julgamentos prontos, das pessoas de alma tão pequena remoendo pequenos problemas. Não tenho sequer a pretensão de pertencer a esse mundo grande que você merece, acho que você tem todo direito de provar muito mais corpos, muito mais cheiros, muito mais gostos, muito mais curvas do que as que você já conhece, do que as que imagina conhecer e do que as que te serão completamente inesperadas. Se couber minha opinião, apenas direi que adoraria.

Mas se você também é só uma coisa que eu quero porque não tenho, porque não posso ter e querer o que não posso ter é um outro jeito de aprender a aceitar que a gente nunca tem mesmo. A gente ocupa espaços, representa papéis, finge que pode preencher vazios mais fundos que o imaginado, matar as sedes que ninguém mata. A gente se deixa cair confortável em qualquer vida que soe como uma luva, que cubra com panos quentes as feridas e os abismos, que faça parecer que é possível fingir que a solidão medonha não existe. Quando a gente se deixa cair mais confortável é que puxam de repente a luva, o tapete, o chão e a queda livre tem essa mistura de poeira, nada e vômito que gruda na boca, na garganta, nos lábios que se ressecam e parece impossível sentir outro gosto mesmo sabendo e forçando o corpo a saber que há muitos.

As cortinas fecham de quando em vez e a gente é obrigado a trocar a maquiagem, o figurino, troca cenários pra garantir. O mais difícil é escrever um texto novo. Mas pra quê? Se posso por em suas mãos, em sua cabeceira, em seus lábios aquele roteiro já tão pronto e bonito. Posso fingir na minha imaginação bem menos fértil do que imagino, que não há hierarquias nem relações de poder. Porque na verdade, nem é um mundo meu que quero te apresentar, quero é me jogar nessa trilha sonora que você me prepara, quero debater as angústias tão certas e petulantes que você tem apesar de e por causa da juventude, quero sorver tuas palavras, degustar embasbacada a forma displicente como você solta a fumaça do cigarro, quero me deixar embalar pela tua voz crítica, firme e perdida. Quero alimentar teu interesse na verdade tão mais fundo que o meu. Quero roubar um pouco da paixão que ainda tens nos olhos, te convencer que a direcionas pelos caminhos errados, quero te dar mapas.

Quero te prometer esse milhão de mentiras só para mergulhar fundo nas coisas inomináveis que esse abraço curto desperta. Quero me deixar levar pelo desconcerto, pelo não saber onde colocar as mãos quando você me oferece um cigarro. Quero ficar horas ouvindo seu jeitinho calmo de falar, te chamar pra tomar um café enquanto te falo as bobagens mais amenas para ver se do outro lado da mesa enxergo uma lasca do sangue da tua ferida que sei que também é aberta e incurável. Eu quero te dizer que conheço unguentos que aguçam as sensações.

Quero é jogar esse quebra-cabeças bagunçado no colo de qualquer pessoa que apareça - qualquer não, desculpe! Quero jogar essa bagunça mal ajambrada de mim em cima de quem tenha apreço literário o bastante para juntar os versos, os fios de barbante, os cacos de vidro, as noites de frio, os pincéis espalhados, os pelos de gato, a luminária, as bolinhas, as listras, o cabelo preto, os planetas em capricórnio, os graus de astigmatismo, o gosto por capuccinos, os timbres perdidos na mente, as citações decoradas e repetidas em voz alta, as birras de criança, a resolvicência de adulta, a petulância, o ar professoral e mandão, os segredos que moram em pedras-quentes-que-encostam-na-sola-dos-pés, as palavras, embaralhadas, perdidas, as peças, pedaços, fragmentos bonitinhos, sujos, gosmentos, doces, quentes, ferventes, gelados - desde que jogue fora tudo o que estiver em temperatura ambiente.

quinta-feira, julho 19, 2012

Cada gosto de vida, ao passo que me satisfaz, me aumenta a sede e a fome

Quando a gente não sente nada, entra e segue de olhos fechados por qualquer rua que dê sentido. Quando o orgulho é grande demais para pedir socorro, a gente é que vaga sob as duras penas de não ter a alma tão funda como supunha. A dor cicatriza rápido quando a gente já conhece os remédios, coloca os curativos certos. Mas o vazio de sempre, a angústia, o tédio - que eu nem sei se é um sentimento - nada cura, nada ameniza, nada consegue pintar de uma cor bonita, nem que seja esse cinza clarinho da minha janela da qual não quero ter de me despedir.

Aquilo que a gente ilude dizendo que já não existe, pulsa em partes diferentes do corpo. Depois de um tempo, a gente se contenta tanto com qualquer emoção, que confunde mesmo desejo com encantamento. A gente se perde em corpos pelo prazer do desconhecido, pela graça das contradições aparentes de quem não se suspeitava. Dá pra desenhar constelações novas em novas peles, há outros encaixes que soam quase perfeitos quando há uma preocupação qualquer com a cena, com o texto, com o cenário. Somos bons diretores e nos fazemos bons personagens. Não parece uma razão suficiente o meu respeito pela sua preocupação cênica.

Eu, afinal, consegui conquistar o ar blasé e invernoso de quem já teve e perdeu um grande amor. Você me cativa com dores maiores, com ausências maiores que me fazem pensar duas vezes antes de desligar o telefone na cara do meu passado freudiano. Posso pensar até dez vezes e ainda assim o faço depois de já ter desligado com uma desculpa menos amarga do que desejaria.

A linguagem é demasiado limitada para procurar as razões do que faz bem, mas eu não tenho... (o que será que é preciso ter? Nem sei...). Não tenho fibra (talvez seja isso) o bastante para cortar uma orelha. Me desestimula até o desafio do corpo, que não se espreguiça nem vai muito longe no meio de um inverno tão rigoroso. Mas aquilo que eu finjo chamar de alma, vai aonde chamarem - vai por saber que qualquer prazer é o que faz um pedaço de vida valer os dias que passam um atrás do outro antes da interrupção para a qual nunca estaremos preparados.

A frase se repete em minha cabeça toda vez que você se vai e eu não sei se gosto mais do momento em que você esteve ou do talento que você tem para me deixar com mais vontade quando a porta fica assim aberta, a música ainda tocando e meu corpo ainda quente. Fica sempre um cheiro que gruda no ar e na pele e se converte em narrativas já menos comprometidas intelectualmente na minha cabeça. Os paradigmas rodopiam junto com náuseas, revoluções e detalhes indizíveis. O que não passa de um problema geracional a gente resolve esperando o tempo passar, assim como o passado não cabe no guarda-roupa, o novo, como grita a lancinante Elis, sempre vem.

E aí cada pequena coisa compensa e cada compensação dá uma esperançazinha pequena de que ainda seja possível se jogar em abismos e perder a direção da rua que a gente entrou por falta de melhor caminho. As penas emprestadas de uma alma qualquer eu mergulho em nanquim e desenho meu barco que está prontinho pra navegar no mar que eu construí de lágrimas.





*O título é um trecho do poema "Da Vida" de João Pedro Magalhães de Sá.

quarta-feira, julho 18, 2012

Amigos imaginários têm medo de chuva

Para se ler ao som de Velha roupa colorida (Belchior) na voz de Elis Regina.

Eu não tinha carro, você não tinha casa. Eu estava mais interessado em seu uniforme colegial, você queria a pulsação de vida que parecia emanar de mim. Eu pagava as contas, você fazia cara de boa moça - e agora acha que me convence com esse jeito de mulher-madura-descolada-e-independente. Eu te mostrei lugares, você me falou de literatura. Nós vimos filmes, lemos livros, fizemos fotos (verbo que eu te ensinei com custo), saboreamos paisagens, degustamos sabores, te apresentei lugares dos quais você se lembraria muito tempo depois sem dizer nada a ninguém.

A gente se deixou marcas que percorreram os anos que nem pareceriam tantos se não parássemos para contabilizar. A gente se deixou lembranças e essa vontade meio confusa, essa intimidade meio distante, esse cuidado-carinho de quem já viveu algo em comum. Nós nunca vivemos plurais. Nunca partilhamos nem mesmo a conta que eu não deixava você pagar e que você engolia em seu feminismo-de-adolescente-sem-grana. Você agora tem grana, casa, olhos frios, voz firme e o mesmo jeito de criança que pede abrigo. A mesma cara de quem nasceu perdida no mundo e se deixa levar por qualquer emoção. Enquanto eu mantenho o mesmo olhar protetor quando uma vontade maior me faz chorar, a mesma ingenuidade ou inibição de quem nasceu sem saber onde põe as mãos, a mesma falta de tato e o mesmo jeito tácito de aceitar as coisas que eu digo e faço.

Eu tenho as mesmas cantadas, as mesmas mentiras, as mesmas complicações. Você tem o mesmo jeito de dizer-sem-dizer que não liga e que compreende, que não vai cobrar, mas que também não vai querer passar da página quinze, que não vale a pena o mergulho, que é mais raso ou menos fundo do que a gente pensa e que conforto não pode e não deve ser confundido com paixão.

Eu ainda vou te dizer que carinho é bem mais que conforto, que nunca há motivo para não fazer quando faz bem. Você vai lembrar dos julgamentos posteriores que fez nesses anos de distância, vai me incriminar, denunciar, olhar com desprezo e até sentir ciúmes enquanto diz que está só constatando a repetição de um filme. Eu vou citar trilhas sonoras com ar metafísico, você vai levar o assunto para alguma discussão política. Eu vou fingir que entendo e errar a pronúncia de alguma palavra bem óbvia, só para ver sua expressão segura de desprezo e reprovação.

Eu vou dizer que você está bonita e te desarmar os olhos com um simples toque. Você vai me pedir para não ir embora e depois vai fingir que não lembra, que estava dormindo. Eu vou deixar em você inseguranças intocáveis, vou fazer uma foto pensando em você e me procurar na sua próxima postagem no blog. Eu vou interpretar tudo errado e você vai pensar que eu sou igual a todo mundo. Você vai escrever uma citação que eu desconheço e eu vou pensar que é para mim sem saber que de fato é. Eu vou usar palavras que você vai classificar segundo os preceitos teóricos desses autores que você leu enquanto eu não estava. O tempo vai passar e um dia vou passar por uma livraria pensando se o nome certo era Guibert ou Guivert. O vendedor não vai conhecer nenhum dos dois e eu vou voltar para casa com um novo-velho LP da Elis Regina que me fará pensar de leve no seu nome. Um dia, meio ao acaso, você vai vasculhar fotos antigas e se deparar com lembranças adormecidas em seu inconsciente. Procurará nas imagens que eu fiz a tal menina que só eu pareço enxergar. Olhando-se no espelho, verá outros contornos, muito menos timidez e essa tentativa frustrada de estar no controle.

terça-feira, julho 17, 2012

Volta fitas cassete que podem ser usadas como luminárias, um copo quando cai no chão pode quebrar ou virar uma girafa. Uma figura mitológica antiga pode virar uma rocha de um país distante. Repetir o mesmo filme pode ter final diferente no mundo em que ninguém presta. A cena pela cena não dá sentido. Não basta representar para viver, sentir. Não dá pra desabalar aquilo que ainda descabela, aquilo que corrói em não aceitação e faz pensar que passar-se-á um tempo, assim com colocações pronominais antigas, e tudo voltará ao normal. Aquele normal morno, quentinho, que eu desejo só porque é inverno e porque tenho uma preguiça enorme de fazer tudo o que está por vir.

Combater o pó diário das emoções é um esforço grande. A gente alterna, se divide em muitos pedaços, muitas bonecas, muitas partes de perder a conta porque assim fica mais fácil que juntar toda a bagunça. Um pouco mais perto de livre agora. Um pouco menos de medo de andar na rua, esbarrar no corredor. A distância necessária, o cadáver já fede, um mês apodrecendo sem coragem de enterrar, sem ânimo para falar e já sem lágrimas porque não é isso o que o estômago produz.

O desespero vai ficando amigo, vira uma espécie de companheiro enquanto corrói as paredes invisíveis. Há que comer, limpar, fazer, acordar, dormir e digerir imagens, histórias, cenas, arte, cultura, literatura. Essa coisa estranha que serve pra gente ver que há outras emoções mais graves, mais bonitas e mais invejáveis do que as que eu jamais sentirei. No fim fica sempre o vazio de um novo começo.

Resta desenhar outros cenários, moldar na unha outros personagens. Tornar mais plural isso que foi se fechando num casulo estranho e eu que me acostumei a chamar de vida mesmo sabendo que a palavra não dá conta da experiência, que o universo semântico mais limita do que ajuda e ainda assim insisto.

quinta-feira, julho 12, 2012

O tremor de repente não é frio e se resolve com nicotina. O desespero se resolve com álcool e a prova resolve como se não contém problemas matemáticos? Se tudo for perdido eu quero ao menos o falso alívio de ter tentado, mas tá difícil. Tudo está muito difícil nesse universo onde não cabe espaço pra sanidade. Cabe procrastinação, uma vontade de ter onde agarrar, de ter possibilidade de porto seguro para as horas de querer jogar tudo pro alto, mas em vez de dizer que vai dar tudo certo e que eu não estou sozinha, tenho sua voz distante, naquele tom de você-está-agindo-como-criança para me mandar para lugares que a boa educação não permite. Quando perde o respeito faz o quê? Eu já perdi tanta coisa pra descobrir que a gente nunca tem nada na vida. Perdi inclusive o tato com as palavras escritas - que o da voz eu nunca tive mesmo.

Me sobra café, cerveja, cigarro e esse desespero incalculável.

terça-feira, julho 10, 2012

Fingir que não estou na minha própria casa, ter segredos para satisfazer vontades alheias. Me tornar uma vontade alheia. Me tornar alheia. Não ter medida das minhas próprias vontades. Não ter nada de próprio nem ter onde morar. Não ter mais na ponta da língua a resposta em versos decorados que me tiram o trabalho de moldar com as fendas das mãos que se desfazem em peles, sangue e ressecamento do frio.

Histórias começam e terminam. Páginas foram feitas para serem viradas e a outra nem ainda. O corpo está quente e o cadáver nem está ainda esverdeado como deveria. Ainda está na mesa da sala, em velório mórbido. Velo pelo prazer sádico de ver apodrecer, quero ver os vermes surgindo e ver se entra na história a controvérsia da geração espontânea. A minha morte eu gero no ventre e aborto. Não basta mais o vômito para expulsar de mim o que precisa de contrações longas, gritos lancinantes e esse frio na pele que é sempre sinônimo de vida.

A pele vai criando fissuras, os lábios descamam, há pruridos que normalmente só surgem no calor. Há o vazio. Há o vazio de pairar no vazio. Há o conforto desesperante de não esperar nada e ainda assim se decepcionar com cada pequena estupidez humana. Dá essa sensação gostosinha de superioridade. Dá essa solidão altiva no mundo, o desconforto, o não se sentir em casa - e tudo bem, já que não há nenhuma para. Há uma esperança de que o refazer preencha alguma coisa, quando toda a superfície está envernizada e não há jeito de mesclar partes, não mistura, não há jeito.

Não há porta aberta. Lacrei fendas e posso pensar em barreiras de som se for o caso. O show está montado e não há palcos. Uma cena perdida apenas, com partes de cenário que perambulam pela casa, fotos inquisidoras que olham e reolham e indagam coisas que a boa educação não permite. Ficou muita coisa para arrumar e jogar fora. Ficou o desespero e a repulsa imensa de tudo o que venha do passado. Repulsa de gente.

Vêm os vícios. A gramática tão repreensível e repressora, os cigarros, as páginas mudas à guisa de companhia, as cervejas, os pequenos detalhes que iludem e fazem pensar que a calmaria não é tanta quanto parece. Não era a última, afinal. Era mais medonha. E virão outros, outras, eu sei. Os móbiles giram e, como um bebê colocado à força e ingênuo no berço, eu olho e reolho e vejo o furacão que se aproxima no vazio de não saber de nada, não querer nada e não ter para onde fugir, não querer correr no meio da tempestade que passa mais depressa e mais lenta do que eu gostaria. Eu não gostaria nada, eu não queria nada, eu só queria sentir. E agora sinto as coisas mais fundas cortando a pelo. Exponho na ânsia de guardar e expulsar paradoxal e simultaneamente.

Eu me perco e nem ligo de estar perdida se a gente encontra um ou outro perdido pelo caminho. Muda tudo a cada minuto e o que permanece é essa desvontade absurda. Fica a ânsia de chafurdar na lama fria, pegajosa, sentir como toca a pele, como é fétida e como gruda na pele e endurece nela assim.

segunda-feira, julho 09, 2012

É só uma questão de gosto, uma questão de cheiro-curva-do-pescoço-com-ombro-onde-o-de-nenhuma-pessoa-é-igual-ao-de-outra, uma questão de toque, peles que se encontram e não importa muito o grau do arrepio, é uma questão de cena - bota as cores, uma iluminação diferente, cenário bem escolhido, uma questão de trilha sonora, vozes sussurradas, inesperadas, timbres, melodias, batida forte pulsando junto com ouvidos entorpecidos, músculos relaxados e gestos aparentemente despretensiosos.

Questão de não ter questão nenhuma, não ter peso, não ter amanhã, não ter paixão triste, submissão, renúncia. Não tem nada além dos tais sentidos que no fim das contas guiam, perdem, acham-se em fundos de copos, fundo dos olhos, poça de lágrimas que sempre acham o tal caminho de casa. Sabe deus por quanto tempo... Quem saberá quantas expressões idiomáticas serão necessárias, quantos ninguéns para quem ser, quantos espelhos em que a gente procura estender-se, esticar, espreguiçar, caber. E nunca cabe, fica nesse transbordamento sem fim, essa procura que se fantasia de passo de dança porque vai que é esse o caminho.

As citações estão prontas e ainda há muitos livros na estante. Muitos papéis em branco, muitas tintas querendo se espalhar nos dedos, desembocar em papel - em cor ou palavra, da melhor forma que caia a carapuça. Poça de sangue, de lama, de lágrima ou mesmo de chuva que molha a raiz do cabelo e lava junto aquilo que chamamos de alma.

E para os dias de frio, basta ter café e bons cobertores. O resto a gente inventa pra se distrair sem saber de fato o que existe.

terça-feira, julho 03, 2012

Eu não quero conversar, eu não quero ouvir vozes, eu não quero ver ninguém. Quero recobrar meu egocentrismo esquecido, quero implodir a convivência civilizada e madura, quero ignorar as ligações que perguntam se eu estou bem como uma cobrança, uma fiscalização das lágrimas, uma sentinela que teme suicídios, dramas, dívidas ou sei-lá-o-que-as-pessoas-fazem-quando-terminam-um-relacionamento. Eu não se o que as pessoas fazem, mas sei que elas também não devem saber e me procuram para saciar curiosidades.

Eu não quero que se preocupem comigo. Eu quero me me deem espaço. Eu quero medir sozinha a extensão das minhas lágrimas junto com os braços, eu quero tatear sozinha os meus próprios poços e - se for o caso de dividir com alguém, é para isso que blogs servem. O folhetim eu exponho em palavras porque a minha voz embargada é só minha. O meu desespero é só meu e é isso o que eu procuro.

Eu não quero ficar engolindo choro, eu não quero fingir que perdoo as coisas imperdoáveis. Eu não quero fingir que não há mágoas fundas e também não quero que ninguém cuide das minhas feridas que só eu sei lamber. Cada um tem os direitos sobre seus próprios mortos, eu enterro com meus próprios rituais, acendo vela, apago, ponho fogo na casa ou o que for. Desde que as minhas oferendas sejam aos meus próprios deuses. Desde que os julgamentos venham de mim.

São as minhas rédeas e se sobra alguma resolução grande de tudo isso é que preservação é importante e eu já me expus muito mais do que devia e podia e no fim das contas ficar na vitrine é só ficar na vitrine e pode ser que alguém quebre o vidro, e dói quando isso acontece. E se ninguém respeita, ao menos eu tenho o direito de respeitar, compreender e tratar bem a minha própria dor - já que é ela o que me resta e é a partir dela que eu vou moldar o que vem pela frente.

segunda-feira, julho 02, 2012

Último adeus


A partir de agora
Você me abala
Mas não me anula
Eu já fui embora
E você ainda fala
Que quer que eu te engula

Está confirmado
Nada foi errado
Você é sozinha
Não levei teu ouro
Tao fundamental
Pra vida de rainha

Me deixa viver
É só o que eu te peço
Escute meu último adeus
É assim que eu me despeço

Mas chegou a hora
De acertar as contas
Com a sua própria vida
Se olhar no espelho
E encarar seu medo
Beco sem saída
É... eu sempre escrevi e vivi
Desse jeito cruel:
As mesmas palavras sutis
Sobre o mesmo papel

Me deixa viver
É só o que eu te peço
Escute meu último adeus
É assim que eu me despeço
Me disperso

domingo, julho 01, 2012

"Tá nos astros, boy"

Para ler ao som de Quase sem querer.

Os planetas em capricórnio dizem que o sofrimento está com a hora marcada. A lágrima do enterro necessário virá, desde que respeite as agendas, os compromissos - desde que tenha a responsabilidade devida. A procrastinação não vê nem como boa desculpa a tal dor. Fina, crônica e de longa data e evocadora de boas músicas guardadas em pastas perdidas da memória.

Alimento um pouco por dia. Tenho excesso de versos decorados, tenho prontas as melodias, os acordes, as sonoridades e os jeitos de mergulhar nos sentimentos fundos, do mesmo modo que conheço perfeitamente as formas, as curvas, os degraus e o barulho que fazem os ponteiros do relógio quando o tempo simplesmente passa e a gente simplesmente vive. Continua vivendo. Eu tenho o conto perfeito e pronto que conforta e irrita e impede a citação outra da "inspiração pr'eu ganhar dinheiro". Ainda assim, a conta vai bem, obrigada por não perguntar.

O equilíbrio dá a satisfação pequena-constante-cotidiana de ir-fazendo. Eu reencontro fácil as minhas partículas reflexivas com exemplos que você nem conhece. Eternos estranhos que se cruzam em ruas, vias, vidas, caminhos, estradas e - de repente - ninguém esperaria, mas chega a hora de dobrar outra esquina e voltar a procurar as coisas todas que durante tanto tempo ficaram em suspenso. Eu te dei mais rédeas do que você seria capaz de segurar e você soltou sem aviso, agora eu corro desembestada pra sentir o vento no rosto e o barulho que faz esse vento quando passa pelas coisas. Corro sentada como a menina que escreve um poema no banco de trás. Corro quietinha, a água tem sempre de esperar a tal temperatura certa para ferver. Corro com sapatos novos, corro nos músculos que se estendem, corro nas arestas que ninguém vê, nem precisa, nem é o caso, nem tem por onde que os trajetos mais fundos não são visíveis a olho nu. Os corpos bem mais fáceis de despir e, afinal, todas as pessoas do mundo tem um pedaço de pele em que o ombro encontra o pescoço e a curva produz o cheiro que nunca é igual ao de outra, e metade da graça está em testar os tais paradigmas.

Eu tenho fantasmas que são só meus. Eu faço a casa com a solidão e sei apreciar com rum, cachaça ou chocolate os sabores que ela adquire mesmo quando medonha. Não preciso mais de desculpas ou esquivas para os meus pronomes tão pessoais. Não preciso ter calafrios das caras de nojo que se erguem diante da minha gramática. Os gestos rolam, os mares são sempre navegáveis.

E dos timbres, rostos, vozes, cheiros e tudo e tal, eu levo sempre as histórias cuja narrativa é tão minha, mas tão minha, que não carece nem de contar. Faço meus cantos, arrumo minhas gavetas, abro, fecho, refaço e tiro os pequenos tufos de poeira insistentes.


Os dicionários ainda estão abertos, as páginas frescas e sedutoras com seus venenos nas bordas. O prazer que dá encostar as pontas dos dedos sutilmente, fingindo não saber...

E o mergulho é fundo, é salgado, é denso e intensamente sensorial. Há adormecimentos nunca imaginados. Há dragões invisíveis, páginas rasgadas, pedaços de papel dobrados e guardados. Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar...