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segunda-feira, dezembro 26, 2011

Continho infanto-juvenil sem título [aceito sugestões]

Esbaforida e atrasada como sempre, Mariana não sabia que estava pronta para iniciar um conto infanto-juvenil. Papel inconsciente, como tinha de ser, entrou na sala se sentindo única e o sendo no meio de tantas outras iguais e desconhecidas.

Não teve tempo de reparar que estava cercada por paredes brancas, algumas teias de aranha próximas ao teto, lâmpadas fosforescentes que ofuscavam os olhos se a gente olhasse diretamente para elas. Mariana não sabia porque não olhou para cima. Além das outras de sua idade que esperavam roendo unhas e/ou olhando os próprios joelhos com expressão de resignado apavoramento havia uma pessoa diferente. Uma mulher cuja altura não se podia mais que supor, já que estava sentada atrás de uma mesa na ponta oposta à porta pela qual Mariana acabara de entrar. Percebeu que era àqueles olhos frios que deveria se dirigir e achou por bem fazê-lo antes de ser interpelada pensando que, com isto, poderia evitar algum constrangimento, talvez aliviasse um pouco a sua barra ao mostrar-se disposta a colaborar.

Documentos, bravejou a moça aparentemente supervalorizando o tamanho da sala ou a distância que a mesa colocava entre si e sua vítima. A voz era de uma rudeza incongruente se fôssemos considerar o rostinho dócil e jovial de quem deveria estar do lado de cá da mesa. Não parecia ter vocação para algoz com aquelas florzinhas cor de rosa que escorriam pelo decote também pouco apropriado para a ocasião. Se fosse comigo aposto que barravam, pensou nossa Marianinha sem conseguir com este pensamento alterar a expressão apavorada.

Retirou do bolso suado do jeans última-moda-e-descolado uma caderneta escolar com as extremidades puídas e desbotadas, esperando que a moça de voz bronqueada não desconfiasse de suas incursões acidentais pela máquina de lavar. Estendeu o papel que fazia as vezes de documento para aqueles dedos finos, unhas curtas com esmalte escuro evidenciando personalidade forte e uma incompatibilidade esquisita com o colar florido do pescoço, o que fez o olhar da menina decair novamente no decote. Percebendo o atrevimento, a mulher rapidamente levou uma das mãos à região do colo, surpreendentemente deixando os seios ainda mais à mostra ao ajeitar o crachá.

O retângulo plástico com dizeres oficiais trouxe um leve estremecimento de pânico que logo desviou os de Mariana para seus próprios documentos que a outra agora tinha apoiado sobre a mesa enquanto preenchia o que parecia ser um formulário.

Assine aqui, ordenou com a mesma rispidez.

Mariana procurou nos bolsos reais e em alguns imaginários uma caneta que sabia inexistente, uma espécie de pretexto para apoiar e enxugar as mãos em si mesma antes de ser obrigada a tocar a outra. Sentia todos os seus dedos trêmulos e incapazes de empunhar uma caneta, menos ainda de escrever o que quer que fosse. Muita coisa passava por sua cabeça, um futuro perdido, as expressões terrivelmente decepcionadas de seus pais, um descompasso com os amigos, talvez os perdesse, já que seria privada de tudo o que eles teriam - a classificação grandiloquente era necessária devido ao seu total desconhecimento do que seria esse tudo, só sabia que estava perdendo.

Sem escolha, pegou a caneta que por sorte foi deixada sobre a mesa, não havendo necessidade de encostar na pele da outra. Coisa que temia e desejava simultaneamente. Paradoxo até então incompreensível para a jovem menina. Debruçou quase todo o tronco sobre a mesa a fim de disfarçar os tremores e esconder o resultado catastrófico que previa do que deveria ser o seu próprio nome. Temeu ser tomada por uma falsária de si mesma, isso devia ser ainda um outro crime cuja nomenclatura não sonhava conhecer.

Ficou novamente ereta jogando os longos cabelos para trás numa tentativa frustrada de sedução. A outra parecia impassível, concentrada em sua função cruel de ordenar e acuar as jovens presentes na sala.

As suas mãos ficaram vazias e encharcadas de suor frio. Um nervosismo intenso lhe percorria o corpo como um choque elétrico nunca experimentado, mas em seu total desconhecimento, tinha certeza de que seria essa a sensação de enfiar um dedo na tomada. De repente, imaginou-se vítima das torturas de que ouvira falar nas aulas de História, perseguidos políticos, desaparecimentos. Uma vertigem estranha lhe tirou o ar, fazendo-a procurar equilíbrio e deparar-se com aquelas lâmpadas fortes e opressoras movendo-se em círculos estranhos.

Está tudo bem?, perguntou a moça com a voz abrandada, já de pé ao seu lado como que a postos para o caso de um desmaio.

Mariana se recompôs como pode, ou seja, tentou fixar o olhar em algum ponto que parecesse mais estático que aquelas luzes dançantes.

Está sim, respondeu um pouco ofegante.

Ótimo, então pode sentar-se. A prova começará dentro de alguns minutos.

sexta-feira, dezembro 23, 2011

A gaia ciência

[Para celebrar o Natal]


O sentido da nossa jovialidade. – O maior acontecimento recente – o fato de que "Deus está morto” de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, "mais velho”: Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo. Essa longa e abundante seqüência de ruptura, declínio. destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanha, nós, primogênitos prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que mesmo nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras conseqüências desse evento – e estas, as suas conseqüências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato. nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que "o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto "mar aberto”:


NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

sábado, dezembro 17, 2011

Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios

Estou há uns seis meses com esse livro em minha companhia com as recomendações de que seria ótimo, uma das obras primas da literatura recente. Tanto que assim que a maré de mil coisas a fazer baixou (e passei para o mestrado! êh!) optei por descansar a minha cabeça lendo o tal livro do Marçal Aquino, cuja foto de capa vocês podem conferir abaixo:


O problema é que depois que se começa a ter senso crítico na vida, isso não se restringe ao que é do âmbito acadêmico, não dá para desligar o botão quando se entra de férias. É bom levantar problemas a respeito das coisas ao invés de tomar tudo como simples deleite descompromissado porque artístico. Aliás, foi isso o que sempre me incomodou no universo das Letras e contribuiu muito para que a balança pesasse mais para o lado da História, um certo ar excessivamente contemplativo e estético que às vezes deixa de lado o contexto e os compromissos inalienáveis que toda obra tem com seu próprio tempo.

Isso tudo para dizer que Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é um livro que até tem seus méritos, mas é extremamente machista. Sabe aquela velha, desgastada e muito difundida imagem da mulher simultaneamente boa esposa e piranha para satisfazer o homem? Pois então... Eu estava lendo com muita boa vontade e curiosidade a trama até uma das primeiras cenas de romance (caso não queira saber detalhes da trama, interrompa sua leitura exatamente aqui, pois vou começar a fazer essa coisa chata, porém, extremamente necessária para dizer o que eu preciso dizer) entre o casal Lavínia e Cauby. A personagem masculina, que narra a história, encaminha-se para abrir a porta para sua amada e no caminho olha desconsertado para a pia cheia de louça com que receberá a visita, "Lavei as mãos na torneira do tanque e, a caminho da sala, passei pela cozinha: louças e talheres sujos se amontoavam na pia" (AQUINO, 2005, p. 34). Até aí tudo bem, né?, o cara tem todo o direito de olhar a sua própria louça. O desagrado iniciou algumas linhas depois e tornou-se completo nas páginas seguintes. 

Continuo com o spoiler: logo ao entrar, Lavínia "deu uma discreta avaliada no caos da pia ao passarmos pela cozinha" (Idem). Nesse momento as minhas sobrancelhas devem ter se retorcido um pouco pelo pressentimento ruim que se confirmou na página 36, quando "Depois de fotografar Zacarias, Lavínia entrou na cozinha e começou a lavar a louça acumulada na pia. Não, não faça isso [Cauby diz]. Eu gosto, ela disse" (AQUINO, 2005, p. 36, grifo, desespero e desgosto meus!!!!). Para fazer o trocadilho besta com o título, para mim, a pior notícia já estava dita.

Vocês vão me perguntar: "por que, então, continuar a leitura?". Não é porque eu gosto de sofrer, é porque eu não podia simplesmente tomar o livro todo por essa manifestação ridícula de misoginia com a clássica compreensão de que lugar de mulher é na cozinha. Não só isso, né?, tem o adendo que nós já ouvimos inúmeras vezes, de que modificar esse papel é ir contra a natureza da mulher, a prova cabal disso é que elas gostam de servir a seus homens, amam as atividades domésticas e nascem com vocação materna. Não larguei porque queria ver até onde isso iria e porque seria pouco justo julgar o livro apenas por essa cena. Vamos então.

Depois que o relacionamento entre Lavínia e Cauby começa a existir de fato, a personalidade da personagem feminina é construída, digo, as duas personalidades o são. O quê? Você não entendeu? Deixa eu explicar: lembra de Lucíola, aquele romance do José de Alencar, lá do século XIX (quando a gente até compreende, mas não aceita!, uma postura mais machista)? É, aquele livro em que a personagem feminina se desdobra em duas, uma casta e outra pervertida? Na verdade é a personagem pervertida que tem um passado triste que justifica ela ter sido desvirtuada do caminho justo de todas as mulheres. A impressão que eu tive é que a Lavínia-Shirley (jájá eu explico isso) é uma Lucíola-Lúcia do século XXI, tanto que no final ela até adquire um terceiro nome e, para a minha nula surpresa, passa a se chamar Lúcia!

Tá, mas deixa eu voltar um pouquinho para vocês entenderem. Lavínia na verdade é histérica, retomando aquela velha imagem de que quando a mulher foge dos padrões é literalmente rotulada como fora da norma, passa a ser considerada louca. Mais um chato cliché que Marçal Aquino nos traz. A diferença é que a 'loucura' de Lavínia é ter duas personalidades, o que para mim seria esquizofrenia, mas como eu não sou psiquiatra, eu vou fingir que não acho que ela dá o nome histeria porque é essa a doença normalmente atribuída às mulheres... Daí, Lavínia é a boa moça, casta, dona de casa, doce, dedicada e delicada. A outra é Shirley, a devassa (é, igualzinho à cerveja que fica reduzindo a imagem das mulheres à vulgaridade e sexo, como mostra esse anúncio em que o verbo pegar e a silhueta feminina, como de praxe, estão bem destacados), cujo apetite sexual é constante e está o tempo todo pronta para realizar todos os desejos de ambas as personagens masculinas, Cauby e Ernani. 

A pessoa que me emprestou o livro (uma grande amiga, porém, bastante sexista - a ponto de dizer isso com um quê de orgulho que me preocupa) disse para eu relevar esses detalhes e reparar na narrativa. Lembram do argumento estético meio vazio que eu falei no início, então... Mas eu não achei a narrativa nada demais. Algum dinamismo, mas não me prendeu. O que me fez continuar até o fim, como disse, foi querer saber até aonde aquilo iria.

Lembram que eu disse que o livro tinha seus méritos? No final, tem uma certa crítica a um protestantismo fanático que anda muito na moda. O problema (sempre há muitos, meu deus!) é que ela é um pouquinho mal construída, porque no fim das contas fica reduzida a um outro preconceito: com as cidades pequenas. A história se passa numa cidade de garimpo do Pará, que não recebe nome, sugerindo que cidade pequena é tudo igual mesmo. O desfecho pretende problematizar a classificação do que é e do que não é pecado, mostrando cristãos que apedrejam um suposto criminoso. Só que o que fica no ar é que a população do interior não tem muito discernimento, cai na conversa de qualquer um, pode chegar qualquer pastor ou empresário pilantra que leva todo mundo na lábia.


Por fim, o que era para ser a minha primeira leitura de férias acabou sendo uma decepção e mais uma constatação de que esse mundo precisa mudar. E que reforçar preconceitos, estereótipos e desigualdades não deve ser o papel de nenhuma arte.

sexta-feira, dezembro 16, 2011

Boas Novas


Jorge Vercillo

Ela tem o frescor dos ares de maio
Ela é filha dos raios
Trovão no chão a se manifestar
Ele tem a palavra que incendeia
O andar que tudo clareia ao seu redor
Ela traz o poder da ingenuidade
Poder que opera milagres
E faz um mundo novo se inventar
Ele traz a loucura sã da coragem
E na camisa a mensagem que vem gritar:
Paz ao mundo inteiro!!
Essa é a minha guerra!!
Que Deus e Alá hão de abençoar
Enquanto fome houver,
prosperidade não há sequer
Enquanto a ganância reinar,
escravo o homem será
Mas boas-novas ainda virão no ar
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Estão vindo, já vieram!

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Aqui Neste Lugar

Sérgio Britto / Negra Li
Ninguém sabe
Quanto cabe pedir
E alguém sabe
Quanto cabe dar
Ninguém sabe
Quando cabe ouvir
E alguém sabe
Quando cabe falar

Meu amor
Será que eu posso perguntar
Quanto amor
Ainda cabe nesse seu olhar

Nós temos um ao outro, o mundo é muito pouco
Temos um ao outro e a noite para inventar
Nós temos um ao outro, o mundo é muito pouco
Temos um ao outro e o dia pode esperar

Ninguém sabe
Quanto cabe insistir
E alguém sabe
O que cabe aceitar
Ninguém sabe
Quando admitir
E alguém sabe
O que cabe negar

Meu amor
Será que eu sei adivinhar
Quanto amor
Ainda cabe aqui neste lugar

Nós temos um ao outro, o mundo é muito pouco
Temos um ao outro e a noite para inventar
Nós temos um ao outro, o mundo é muito pouco
Temos um ao outro e o dia pode esperar

A morte dos girassóis


(Caio Fernando Abreu)

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: "Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira." Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: "É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo,e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral."

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa. Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas. Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei
uma fera. Gritei com o pintor: "Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?" O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então,como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra,exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a idéia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para quecaíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu?

Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.


segunda-feira, dezembro 05, 2011

Agora falta pouco para o mundo mudar de cor -  e ele já tem muitas cores. Tem coisas que a gente não diz, as mais difíceis de engolir. Há coisas que é preciso gritar, lutar contra. Um gosto amargo e pastoso na boca, é isso que depois se converte em sulcos que gritam nas horas difíceis. É difícil se posicionar o tempo todo, ter força e voz o tempo todo. Mas a gente vai tentando com a certeza de que não ser fácil não é motivo bom o bastante para não fazer. Vez ou outra a gente até é surpreendido positivamente. Outras vezes não - e aí vale a pena chorar, gritar, xingar desde que depois passe e a gente saiba olhar o sol que nasce todos os dias. Depois passa, sempre passa.

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Feriado Nacional

Paredes amarelas, emblema de série trocada, meias brancas, aulas de português, bobagens nas aulas de química, peças de teatro, bilhetinhos, provas, choros, brincadeiras, brigas, recreio, desenhos no quadro, trabalhos em grupo, festinhas, amigo oculto, ovo oculto, debates pseudo-cults, amigos, CIPQP, fantasias, professoras, professores, quadra, arquibancada, festa junina, mural, espelhos, banheiro feminino, amigos amigos amigos... Livia Bessa, Bárbara Araújo, Larissa Pace, Natassja Menezes, Bia Furtado, Fernanda Altoé, Lute, Dinho, Ivan, Edgar, Marianna Camizão, Michelle, Izabel, Natasha Marchelli, Nathalia, Rafaela, Romã, Carol Brunelli, Fernanda Veras, pessoas que me lembro sempre, outras que são só nomes e lembranças guardadas, nomes completos que a gente aprendeu na chamada! Sete anos que se estenderam e se alargam das paredes amarelas - que agora são azuis - e viraram uma coisa inexplicável, que a gente só sente. Sente ter acabado, sente ter continuado, sente ver as pessoas assim crescidas, desabrochadas como flores vistosas (papo brega de mãe orgulhosa). É bom fazer parte e ver nunca será um colégio como qualquer outro - nem será só um ufanismo acrítico como alguns gostam de acusar. Esses, os que não sabem nem nunca saberão o que é ser aluno do Colégio Pedro II.


As datas servem para memorar em conjunto! Feliz aniversário CPII!

quarta-feira, novembro 30, 2011

As unhas não correm risco, nunca tive o hábito de roê-las - nem de conjugar esse verbo, por isso soou tão estranho agora. Mas o estômago eu começo a sentir corroendo na ansiedade que sempre chamo de angústia para vestir uma personagem exageradamente cliché. As pontas dos dedos é que podem se desgastar de tanto clicar no mesmo botão, atualizar a mesma página e não ver nada ainda. Sempre o medo do fracasso, o medo da frustração, enfim, o medo que aos poucos vai se esvaindo na certeza de que de todas formas as coisas se acertam e se ajeitam de algum jeito. MAS PODIAM SE RESOLVER LOGO!!!!




terça-feira, novembro 29, 2011

Machismo na novela das oito

Aposto que de olhar o título vocês estão pensando, dã! Machismo está em todos os lugares e na novela das oito da Globo é que não ia faltar. Não duvido que existam umas dez cenas dignas de comentários críticos e revoltados a cada capítulo, mas como vocês sabem, eu não vejo mais tanta tv e o tempo de abstinência que eu pude experimentar me ajudou a ter um estranhamento maior quando me deparo com os absurdos cotidianos da telinha.

Pois bem, estava eu ontem diante da novela Fina Estampa quando, entre uma cena e outra de maldade clichê, me deparo com uma cena de violência contra à mulher. Não, eu não estou falando da personagem Celeste (Dira Paes) sendo espancada pelo marido, um esforço que considero válido de discussão do tema na sociedade. A cena que me chocou por não ter nenhuma tentativa de problematização e muita legitimação da violência foi uma cena com as personagens Danielle (Renata Sorrah) e Enzo (Júlio Rocha). Não achei o vídeo da cena (só o capítulo inteiro e não sei cortar), acompanhem a minha humilde descrição, vejam se soa familiar e escolham o final. 

Danielle está numa festa sozinha. Ela fala ao telefone com alguém enquanto bebe o que parece ser um drink quando é abordada por Enzo. O cara solta uma dessas cantadas baratas e recebe um fora. 

O você acha que acontece na sequência?

a) O cara pede desculpas e vai embora.

b) O cara insiste, a mulher continua negando e é agredida.

c) O cara insiste e consegue ir para a cama com a mulher.


Apesar de muit@s desejarem que aconteça a opção a e saibam que não são raros os casos em que a letra b acontece, a ficção global optou por nos enojar com a letra c, com agravantes assustadores de legitimação de uma suposta necessidade que as mulheres têm dos homens e os direitos que estes têm sobre elas. 

Quando Enzo aborda Danielle já do lado de fora do local da festa, entre as palavras do que para mim é um estuprador, estão frases como "Eu vou tirar o seu atraso" e "Você está precisando muito de um homem". Eu já me senti ofendida de ver a cena e ingenuamente esperei que a negativa fosse continuar, mas quais não foram meu nojo e meu estranhamento quando a mulher foi para casa, olhou para o agressor da janela (ele continuava na calçada, olhando com aquela expressão de quem acha que mulher é um pedaço de carne) e abriu a porta de sua casa para que ele subisse e "tirasse o atraso"!



Sabem o que essa cena me diz? Repete aquela concepção besta de que mulher não pode dizer não e até quando diz, está querendo dizer sim*. Esse tipo de cena diz aos homens que as mulheres estão apenas fazendo doce e que, se você transar com ela à força, você vai estar dando a ela tudo o que precisa e depois ela vai te agradecer. O que também me remete a absurdos que (como a Lola diz) os trolls ficam dizendo por aí - esses eu não vou linkar porque não se dá audiência para maluco, nem visitação para criminoso, foi minha mãe quem me ensinou -, como que você você vai estar fazendo um favor à mulher e, na verdade, ela nem sabe o que quer, não pensa. Lembram que a racionalidade é exclusividade do homem? Que mulher serve para cuidar da casa e dos filhos (não que eu acredite que não é necessário muito pensamento racional para isso) e que quem responde por ela é o pai, depois o marido e depois os filhos? Ué, você achou isso um absurdo de tempos que já se foram? Então porque a opinião e a vontade das mulheres a respeito de si mesmas e do mundo não são levadas em consideração?





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* Sobre o desrespeito ao não da mulher, um entre vários textos ótimos é o da Sara Joker que você pode ler no Blogueiras Feministas: http://blogueirasfeministas.com/2011/10/nao/ 

quinta-feira, novembro 24, 2011

A vontade de férias traz vontade de música, daquela que vem viva e com contorno de sol



O amor precisa da sorte
De um trato certo com o tempo
Pra que o momento do encontro seja pra dois o exato momento
O amor precisa de sol
E do barulho da chuva
De beijos desesperados
De sonhos trocados da ausência de culpa
Talvez o amor só seja assim pra mim
E pra você não seja nada disso
Mas eu prometo tentar aprender a te amar do jeito que for preciso
Mas se o amor quiser mudar as leis do que é certo
Ele faz que o improvável aconteça
Quando o amor vier não tema, tenha fé
Que ele será seu olhar, esplendor e beleza
Talvez o amor só seja assim pra mim
E pra você não seja nada disso
Mas eu prometo tentar aprender a te amar do jeito que for preciso


Uma preciosa propaganda contra a assistência

Talvez fosse necessário algum tipo de desculpas por não falar de uma coisa atual - parece que a internet como grande expressão do mundo acelerado e presentista precisa falar do que aconteceu há dois segundos atrás ou vai acontecer daqui pra frente. Contudo, antes de internauta ou blogueira (nem sei se sou alguma dessas coisas), sou historiadora e o passado é uma preocupação porque nunca está morto, prova disso é o meu assunto de hoje ser uma pulguinha que está coçando os meus dedos há algum tempo pedindo para ser escrita. 

Ok, Preciosa não é tão antigo assim, o filme é de 2009 e, se não me engano, assisti a ele em algum momento desse conturbado 2011. Na ocasião, tive a reação que imagino ter sido semelhante à de muitas pessoas: fiquei super sensibilizada com a história triste da menina, achei um absurdo tudo o que ela passou, pensei "como tem gente ruim no mundo", me acabei de chorar e recomendei para todos os amigos que gostam de um bom drama. À época, elegi com meus botões os temas da desigualdade, exploração sexual, racismo, discriminação como os temas de maior relevância da trama. Não digo que não sejam importantes todas essas coisas e que não seja válido que a história suscite discussões ou ao menos nos obrigue a pensar, ainda que brevemente, o quanto tudo isso está presente no cotidiano da nossa sociedade "judaico-cristã-ocidental". 

Isso, é claro, se a gente considerar quantas pessoas conseguem pensar criticamente quando estão tomadas pela emoção de cenas violentas e angustiantes. Admiro muito quem o seja, mas o que eu fiz ao longo e depois do filme foi ficar com muita raiva daquela mãe desocupada dela, até mais do que do pai ou das outras pessoas que violentam de várias formas a personagem ao longo da trama. Aí, sei lá quantos meses depois, estava eu numa ótima aula discutindo as influências do neoliberalismo nas políticas públicas educacionais no Brasil e me lembrei de algumas cenas da personagem da mãe da Preciosa. 

Uma das cenas mais impactantes

Por quê? Porque reparei o quanto esse filme é uma propaganda do modelo de self made woman levado às últimas consequências. Porque, afinal, o que a trama nos ensina não é outra coisa que não "não importa o quanto te ferrem, não importa quantas desgraças você sofra, você precisa superar isso e dar a volta por cima" - e com o seu próprio suor, porque, como todos podem ver, políticas estatais assistencialistas só levam à acomodação. Precisei me distanciar do "calor dos acontecimentos", como dizia um professor muito querido, para perceber que a personalidade da mãe é construída com base numa ideologia neoliberal segundo a qual assistencialismo é atraso para a economia, estímulo ao ócio, gasto desnecessário, além de, é claro, atrapalhar a livre concorrência da mão de obra. As pessoas que realmente querem, as realmente talentosas, vão vencer todas as adversidades. Capaz até de se tornarem pessoas melhores e de darem mais valor ao que conquistarem.

domingo, novembro 20, 2011

Se essa rua, se essa rua fosse minha...


Eu sei que não é fácil. Eu sei que você sabe que eu sei que não é fácil tanto quanto nós sabemos que vai passar mas nem por isso deixamos de repetir o máximo de vezes que dá para ver se passa mais rápido. Às vezes as coisas ficam muito à flor da pele e a gente deixa entrar um ventinho da janela que chega a doer nos poros todos. A dor parece tão funda e parece ainda mais funda porque a gente sabe que, se não tivesse assim tão sensível, não ia ter dor nenhuma. Seria até bom aquele ventinho no rosto.

Queria te dizer que estamos juntas, mas sei que às vezes você só quer ficar sozinha. Queria te dizer que eu queria que as minhas frases não te machucassem e que eu queria que pudéssemos dormir todas as noites. Que essas tais pedras que temos que botar na hora de construir o caminho às vezes são muito pesadas e que eu percebo quando elas machucam os seus dedos, doem nos seus braços e ombros e eu queria que não doessem nunca, ainda mais quando é uma pedra - mesmo uma pedrinha - que você só pega para me ajudar. Vai ver o bom dessas pedras grandes e pesadas é que ajudam a construir a estrada mais rápido, aí quem sabe chega logo a hora de podermos olhar o contorno e ver como há flores e cores e céu e nuvens em formatos estranhos e tantas outras coisas que não são essa estrada.

Eu quero ver e apontar deseducadamente e rir e sentir o sol das coisas com você. Mas enquanto isso, me dá essa pedra, deixa eu segurar desse lado de cá que a gente divide o peso.

sexta-feira, novembro 18, 2011

Eu quis cantar minha canção iluminada de sol, quis deixar para você um beijo que não precisasse ser deixado porque sempre junto, mas sempre junto não tinha saudade e a gente tava perdida, caminhando que nem duas meninas no escuro, com medo e sem saber o caminho.
A gente não sabe o caminho, mas já descobriu que tem que colocar as pedras uma a uma antes de passar. E depois colocar os pés, um de cada vez, as mãos dadas, mesmo quando é tudo ao mesmo tempo.

terça-feira, novembro 15, 2011

Rejeição e histeria feminina da Música Popular Brasileira

Há alguns dias atrás, alguns de nós ficaram chocados com dois casos de violência contra a mulher: o da moça de Natal e a outra de Belo Horizonte. Para mim, o que não choca, mas enoja são os muitos argumentos que justificam ou diminuem a proporção da agressão numa hora dessas. Não são poucas as pessoas, homens e mulheres, que ouvi comentando que se elas tivessem sido menos duronas, ou tivessem topado conversar com os caras, as coisas não seriam tão graves. No caso da Dani, me incomoda mais a série de violências que ela sofreu quando solicitou ajuda do segurança e do dono da boate.

Ela deve sofrer de excesso de fragilidade nos ossos...


Como eu disse, essas coisas me enojam, incomodam, mas na real, não chocam. Por quê? Porque violência contra a mulher e a ideia de que todas as mulheres são presas esperando o-macho-alfa-que-não-pode-ser-recusado são pensamentos bastante legítimos em nossa sociedade. Uma evidência disso é uma música que eu venho ouvindo com muita frequência sendo veiculada por uma das rádios mais tocadas no núcleo cult bacaninha do Rio de Janeiro.

Trata-se da canção A Doida, de ninguém menos que Seu Jorge, um dos destaques recentes da mpb, cujas canções eu costumava gostar. O título já revela bastante da imagem feminina que se desenha, não? Não é de hoje que as mulheres fora do padrão são colocadas no saco da loucura, muitos estudos no campo da História da Loucura se debruçaram sobre a patologização do comportamento fora da norma da mulher.

Suponho que algumas pancadas devem "curar" esse tipo de coisa.
A música conta uma breve história que pode se passar em qualquer casa noturna por aí: uma mulher que dispensa um homem. Sim, a personagem feminina aparentemente seduz o pobre coitado do homem à noite toda. Ele, enganado e iludido, paga bebidas - porque, obviamente, aceitar uma bebida é aceitar ir pra cama, como eu não pensei nisso se eu sei, como todo mundo, que toda mulher é prostituta - e depois é abandonado ao relento, pois "a doida vazou" como diz a música.

O sucesso da música para mim está bastante relacionado àqueles argumentos que defenderam os agressores da Dani e da Rhana, já que uma mulher que dispensa um homem (porque um homem é a única coisa que uma mulher precisa na vida, certo?) só pode ser lésbica ou doida mesmo. Porque todas as mulheres devem dar graças a deus todos os dias de suas vidas por terem homens dispostos a "bancar a noite inteira" e os homens, bem eles estão certos de não aceitarem um não, porque, afinal, "eles não são de perder", quando perdem, é legítimo que fiquem p*tos e acabem quebrando alguma coisa - não será culpa deles se essa coisa acabar sendo o braço ou a cara daquela que o rejeitou.

segunda-feira, novembro 07, 2011

Compromissos, birras e frases ríspidas


Não posso negar que tenho o defeito de me sentir injustiçada. Sabe aquela mania que a maioria dos seres humanos têm de se encerrarem dentro de seus casulos cinzas achando que os seus problemas são os maiores do mundo? Então... Acho que eu passo uma boa parte do meu tempo enxergando moinhos enormes que não me deixam dar sequer um passo de tanto medo. Eu posso até saber que existem sofrimentos muito mais graves, mas, por mais que eu me solidarize com a dor do outro, não tem jeito, é só a minha que dói na minha própria pele. E dói bastante, bem mais fundo que a pele até. Às vezes dói no estômago, noutras ardes nos olhos insones, nas pernas esticadas ou dobradas, a depender das circunstâncias, por mais tempo do que deviam e queriam. Há os momentos de doer nos braços e nos ombros o peso; além das mãos, a escrita infindável (quem falou que escrever não é trabalho braçal nunca teve de dar aula escrevendo no quadro por um dia inteiro). Da cabeça não se fala, a falta de sono, a visão que parece diminuir a cada dia ignorando a minha aparente juventude.

Doem as contas, os prazos, as cobranças, as datas, as horas que passam, os passarinhos que começam a cantar, desaforados e lindos, antes que eu durma, o sol que nasce agredindo, de novo, os pobres e exaustos olhos. Dói a minha ausência de mim, das pessoas que amo e que pouco vejo nascerem, crescerem, envelhecerem. São dores pequenas que se somam e que eu sei que são pequenas e minhas. Não saem das minhas paredes, não são despejadas em cima de ninguém. Não se convertem em lamúrias para amigos - dos quais prefiro mesmo me afastar para não ficar uma pessoa chata e lamurienta. Daí que vem a outra dor, a da incompreensão.

Uma das coisas de que não gosto na vida é quando colocam o lazer na esfera da obrigação. Sabe quando você marca de ir à praia num lindo domingo de janeiro e reclamam da sua meia hora de atraso? Este é só um exemplo, pois nunca tive o hábito de me atrasar. Me entristece que as pessoas criem ainda mais causos e sofrimentos pelas minhas ausências, transformem-nas em ainda mais cobranças como se fosse porque eu gosto que fico noites em claro trabalhando, como se eu amasse trabalhar aos sábados e ter ainda uma vida para resolver no domingo, antes que chegue a segunda-feira e atropele o tempo, criando mais bolas de neve insolúveis.

Dois mil e onze tem sido um ano difícil, de muitas (in)definições que eu espero que passem junto com o calendário. Muitos abismos e poços cujo limo já entranhou na minha pele de um jeito que eu nem sei quantas águas de janeiro serão necessárias para limpar. Mas tenho fé e boas esponjas de banho. O que eu não preciso é de pessoas que agravem mais do que eu os meus problemas. Pessoas que criem cobranças dentro das cobranças quando o papel de amigos poderia (poderia, apenas, pois não acho que ninguém deva nada a ninguém na vida) ser acompanhado de compreensão, apoio, afeto, sei lá, essas coisas que a gente diz em cartas da adolescência e depois ficam perdidas em gavetas antigas. Essas coisas que a gente vai deixando de ser e nem percebe. Quando vê sobram só compromissos, birras e frases ríspidas.


terça-feira, novembro 01, 2011

"Tudo quanto não seja literatura enjoa-me e torna-se detestável para mim porque me importuna ou entrava, mesmo que seja hipoteticamente" (Diários, Franz Kakfa)

Não sei onde quero chegar indo a lugar nenhum nem me pergunto mais se eu sei o que é bom para mim se eu sempre caio nas minhas próprias armadilhas.

Repetir repetir repetir até ficar diferente.

segunda-feira, outubro 31, 2011

A flor e a náusea (sempre ela)

As pessoas escrevem para serem lidas. Grande obviedade, grande verdade da vida, grande frase grande que todo mundo esquece. Algumas escrevem para uma pessoa em especial, umas em especial.

Lembro que, na época da escola, eu gostava muito de me gabar da minha incrível capacidade de perceber logo como era o meu principal público leitor e bem rápido cativá-lo. Um egoísmo estranho me fazia transferir o mérito (sim, ele existe para alguns) das minhas queridas professoras, que conseguiam me ensinar como escrever argumentos passáveis, para o meu imaginado talento retórico.

Também já achei que escrita era uma questão de imaginação. A história mais criativa, com alguma beleza de acréscimo venceria. Sim, a disputa tinha de estar em jogo. Depois eu descobri que podiam se danar os outros, que eu ia continuar amando as que fossem mais bregas, dolorosas, sofridas, que tocar era sinônimo de sangue, o mais quente e mais abundante. Hoje eu tendo a achar que foram as tais adoráveis professoras que me convenceram erroneamente de que eu tinha algum talento para brincar com as palavrinhas - será que um dia eu aprendo a deixar de culpar as pobres e assumo as minhas próprias contas e riscos? - e que os meus insucessos são fruto de uma falsa fé somada a um não talento.

Passei também pelo tempo de achar que o segredo das palavras está na intensidade com que você ama os musos e as musas, passaram alguns, ficaram outros, deixaram versos, contos, textos e uma preguiça emocional de reviver cada coisa para revisar cada texto. Também teve o tempo de amar os grandes e ler exaustivamente para ver se transpirava do papel algum talento que molhasse as minhas mãos. Se eu disser que não funcionou será mentira, porque amo ser "a última geração que sabe versos", como dizia Caio de um si mesmo que ele não era.

E nesse desabafo aqui que tinha o objetivo inicial de dizer que a gente escreve para si mesmo e para o outro e o outro lê a si mesmo e acha que te lê e ninguém nunca se entende, lembrei que hoje é dia de Drummond - e que é bem melhor falar dele do que o quer que seja.



"Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio,
paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horasda tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".

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Quanto às tão criticadas professoras de português, a elas a minha gratidão eterna pelo incômodo que me formiga a cabeça toda vez que leio um absurdo, seja maior ou menor que este aqui.


terça-feira, outubro 25, 2011

Fruta da estação

Sentia a proximidade das peles que não se tocavam, deveria existir um verbo para expressar apenas esse não toque, essa presença. Como quando a gente está em cômodos separados, mas se houve em ruídos, se vê em reflexões dos vidros dos móveis, se escuta nas pontas dos dedos que poderiam ser distantes, às vezes são, mas não sempre. Os pêlos que já não têm acento eriçam nessa indecisão provocante do semi-toque. Como quando você me liga para perguntar um caminho que tem plena certeza de que eu desconheço só para ouvir que não me importo de tentar descobrir junto com você. Como quando viramos noites em tarefas que passam a ser em dupla, trabalhos, relatórios, projetos, contos, aulas - porque as pessoas não sabem que a vida é em couple em tempo integral. E a gente se participa, confunde os temas e se pega gostando mais de uma coisa que nem é nossa - e nem existe para lado nenhum esse limite da possessividade.

Vamos ver um filme só para esquecer um pouco os problemas da vida? Vamos arrumar a casa só para esquecer um pouquinho os problemas de dentro? Vamos arrumar o cabelo, as unhas, as frases para esquecer um pouquinho que a vida é grande, grave e incerte? As roupas se misturam numa vaidade completamente perdoável. Nos misturamos e distanciamos numa oscilação de respiração ofegante de quando uma chega correndo para contar à outra que. Às vezes dormimos abraçadas e acordamos em disputa, às vezes a raiva pequena me faz querer olhar para a parede fingindo que nela não tem um espelho, mas quando acordo nada faz sentido antes de te olhar e ver que você ainda está aqui.

Adoro saber que o tempo vai passando e a gente vai construindo - assim, no gerúndio que indica ação em andamento e simultânea - coisas mais profundas. O erro foi acreditar que acharíamos as coisas todas prontas no caminho, talvez numa estrada de pedras coloridas. Quando abrimos a porta e vimos que não havia nada lá, não imaginávamos o quanto seria longo, intenso, saboroso, construir aos poucos, a cada dia, o nosso caminho.

Sabe aquele sentimento disforme que eu te mostrei num texto ainda escrito à lápis e você me falou em sussurros em outra língua? A gente foi falando, moldando, provando, vivendo, fazendo, definindo... E muda, como muda de planta, homonímia, cresce, tomba, muda de cor, brota, floresce, resseca, chega perto do céu, tomba no chão, vira adubo, vira jardim, desdobra em breguices, pieguices e originalidades.

Não importa quantas vezes tenhamos que mudar de mundo de casa de vida de cabelo de roupa de comida de país de trabalho etc. etc. etc. etc. - as minhas mãos vão estar coladas às suas.

E hoje não é vinte e nove.

quarta-feira, outubro 19, 2011

Não se incomode


O que nos faz gostar de um texto, um livro, uma música etc.? Depois de um debate de que participei semana passada, em que um autor de quem gosto muito foi severamente criticado (um doce para quem adivinhar qual é o autor) fiquei pensando nos motivos que me fazem gostar das coisas e conclui que geralmente é a identificação. Já vi e li algumas tentativas de descrição da arte que passavam pela frase "Quando alguma coisa toca". Do alto de meu egocentrismo, eu percebi que só costumo achar alguma coisa digna de nota quando ela "me toca", no sentido de proporcionar reconhecimento. Quando, em certo sentido, eu me vejo definida por um texto, uma música, um quadro etc.


Livro que eu aos 11 anos, acho.


Afora os meus problemas de formação identitária, percebi que existe um problema grande nesse tipo de relacionamento com a arte ou mesmo com o conhecimento - para colocar os textos acadêmicos no bojo. É que a identificação nos coloca numa situação de conforto que considero bastante perigosa.

Num movimento paradoxal se comparado a essa postura que acabei de mencionar, eu sempre tive como uma outra definição para a arte a de que é algo que transforma as coisas ou, mais pretensiosamente, a sociedade. Artistas são pessoas que questionam, mudam, nascem desconfortáveis no mundo.

Tem uma frase que sempre me vem na cabeça e nunca sei se é da Hannah Arendt ou da Clarice Lispector (não sei à qual das duas devo pedir desculpas, peço a você, leitor, pela imprudência da flata de precisão), é algo como a gente sempre fazer as coisas para tentar se sentir em casa no mundo. Tá aí o problema, se a gente está desconfortável, acha alguma poesia bonita de alguém que também já esteve e pronto, supostamente a angústia está saciada e podemos continuar a nossa marchinha de ovelhas.

Cartaz do movimento Maio de 68 na França

Tenho pensado que o desafio da arte - e aí eu me estendo para o conhecimento de modo geral - é lidar com o estranhamento, com o que não diz respeito a nós, para aí sim, construir o que é esse nós (que pode ser preferível, mas não exclui o construir um eu) e ao invés de tentar se sentir em casa no mundo, construir um mundo em que a gente se sinta em casa. Difícil? Deve dar um trabalhão, né? Como uma professora minha costuma dizer, o problema de desconstruir algo é ter de construir outra coisa para colocar no lugar.


segunda-feira, outubro 17, 2011

Tia Aila, tia Fátima, tia Deise, tia Val, Adriana, Vera, Danuza, Dona Ida, Elenice, Léa Anastassakis, Moema, Adriana de novo, Sônia, Luciene, Celso (ainda!), Lourdes, Rosa Maria, Mônica, Elza, Elba, Gilda Vermeule, Regina, Marcus, Ângela, Kaká, Jackie, Fabiana, Daniel, Alessandra, Jorge, Kátia, Celiza, Magda, Cristina, Gal, Patrícia, Fanny Pomp, Patrícia outra, Roberta, Zé Cláudio, Polyana, Marcelo Beauclair, Rinaldo (por que não?), Luiz Alfredo, Eunice, Adão, Maria Alice, Lúcia, Manoel Luiz Salgado Guimarães, Murilo Sebe, Jessie Jane, Pedro Duarte, Jacqueline Calazans, Andréia Frazão, José Ricardo Ramalho, Juliana Beatriz, Flávio Gomes, Denilson Botelho, José Murilo de Carvalho, Alcilene Cavalcante, João Fragoso, Flávia Guerra, Tatiana Poggi, Douglas Átila, André Lemos, Naiara Damas, Francisco Carlos, Marcella Estevez, Mariana, Thais, outra Mariana, Mônica Lima, Wagner Pinheiro, Giovana Xavier, Dilene Nascimento, Jussara Macedo e tantos outros que o nome talvez tenha escapado mas que participaram um pouquinho. Minha lembrança, ainda que atrasada, pelo dia dos mestres.

quinta-feira, outubro 13, 2011

Quem é mais vulnerável ao preconceito?

Domingo passado teve Parada Gay em Copacabana, terceiro maior evento cultural do Rio de Janeiro, segundo o Grupo Arco-Íris. Não sei se isso é algum tipo de mérito, fico mais tentada a acreditar que esse é mais um argumento para os que criticam a participação que as boates têm nessa história. Não quero entrar nesse mérito da questão, para mim, a grande importância do evento consiste na visibilidade provocada pela avenida Atlântica pintada das cores do arco-íris e dizendo que uma grande parcela da população é privada de muitos direitos. Aliás, bato palmas para o destaque muito maior dado às frases de luta e, para os críticos de plantão, o menor espaço que as boates tiveram esse ano.

Milhares de pessoas já estão na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, e a expectativa da organização é de 1 milhão de participantes. Foto: Gabriel Macieira/Especial para Terra

Além de tudo isso, entre os objetivos da Parada estão a divulgação de informações consideradas importantes para a comunidade LGBT (perdoem se a sigla estiver errada, é que muda muito...). É aí que está a pergunta que está na minha cabeça desde domingo e que me leva a escrever isso aqui agora: consideradas por quem?

Durante o evento, sempre são distribuídos panfletos sobre assuntos como criminalização da homofobia, religião (ao contrário do que conservadores de plantão podem pensar, me refiro a panfletos de igrejas que acolhem homossexuais), união estável, propagandas de boates e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Até aí, tudo bem, informação nunca é demais. O problema está em um desses papeizinhos que fala da importância de prevenção devido à maior vulnerabilidade da população LGBT ao contágio de algumas doenças.

Reproduzo aqui o trecho pois não encontrei o folder inteiro no google (pasmem!) e estou com preguiça de scannear: "O Ministério da Saúde preconiza e disponibiliza a vacina [contra hepatite b] no Sistema Único de Saúde (SUS) para os grupos de maior vulnerabilidade, independente da faixa etária. Entre eles, destacamos: Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais; mulheres que fazem sexo com mulheres; homens que fazem sexo com homens".

Além das dúvidas que tenho quanto essas duas últimas "categorias" sexuais (quem sou eu para rotular se as pessoas querem criar mais uma?), fiquei me perguntando sobre o embasamento biológico dessa vulnerabilidade, já que a cartilha do Ministério da Saúde sobre o assunto descreve as formas de contágio sem apontar esses grupos de risco.

O mesmo folheto incentiva a realização do exame que diagnostica a presença do vírus HIV. Claro que realizar o teste é importante, mas... Eu não sou ingênua a ponto de perguntar quem foi que disse que homossexuais são as vítimas preferidas da Aids, porque eu sei que muita gente já disse isso. Não querendo me valer do órgão oficial da saúde como única verdade sobre doenças, mas no que diz respeito à Aids, o Ministério menciona sim os homossexuais. Entretanto, ao contrário do que muita gente ainda pensa, para dizer que os cuidados relativos à população LGBT nesse caso se deve ao estigma e ao preconceito imputados. Para o espanto de muitos, o portal destaca ações específicas de prevenção entre jovens, mulheres e presidiários.


Obviamente, nem tudo são flores no reino do Ministério da Saúde, já que até a campanha que critica o preconceito (acho muito legal o slogan "A Aids não tem preconceito, você também não deve ter") diz que as pessoas são corajosas por exporem sua soropositividade. Não sei se esses jovens-selecionados-de-acordo-com-o-padrão-de-beleza-vigente são realmente soropositivos, procurei o site indicado para ter maiores informações e - tcharam! - o link está corrompido (o que também explica essa imagem pela metade aí, desculpem). Acho importante que as pessoas desassociem a doença daquela imagem do doente terminal dos anos 1980, mas acho pouco provável que substituir pelo padrão de beleza dê conta de desconstruir preconceitos. Para mim, Aids não tem cara e ponto.

quarta-feira, outubro 12, 2011

Tem algum tipo de incompatibilidade, desarmonia para além do desânimo. Sei que não tem cura. Sabemos que não. Não é doença. É só uma coisa que não sabemos o que é e vai ficando e neblinando as coisas, as pequenas coisas, as pequenas farpas que a gente já não faz questão de guardar, os pequenos cuidados e carinhos que a gente vai deixando pra lá. A vida anda sem literatura - e também sem vontade de ler. Anda silenciosa, sem vontade de ouvir, falar, escrever. Anda um dia atrás do outro, tentando não pensar nas coisas grandes, mas até as pequenas têm sido assim. E vão passando os dias, vários, sem que a gente saiba como vai ser.

terça-feira, outubro 11, 2011

Eu nasci bem depois do que eu gostaria, mas apesar da ausência de cartas que povoa o meu mundo, a greve dos correios ainda consegue parar muita coisa. Sinto saudades de um tempo de confissões graves, faz muito eu me fechei num casulo estranho, vazio, vazio. Por opção, eu acho (o vazio e o trancamento), apesar da minha cara de quem nunca escolheu nada na vida.

quinta-feira, setembro 29, 2011


Escrevo só e ando só. Já faz tanto tempo que desaprendi a linguagem dos outros, a linguagem que eles usam para se comunicar. Principalmente a corpórea. Aí eu fico esperando um algo que aconteça dentro ou fora de mim, uma epifania que me dê algum caminho, já que eu não engano ninguém e nem quero enganar. Me afastei de gentes. Não sei mais o cheiro ou a textura que as pessoas têm. Não sei o que vou fazer nem amanhã nem no próximo mês ou no próximo ano. O mar aberto tem ondas revoltas, batem geladas no rosto toda hora, deixam mareada, com vontade de voltar para a terra firme.

Voltar nunca é possível. As metáforas são frágeis. O momento presente é o pedaço frágil de patim cujas fraldas eu sempre esqueço de trocar, ou finjo que esqueço por falta de vontade. Queria uma rotina, uma prisão daquelas com cartão de ponto e tudo, contanto que acabasse bem na hora de ir embora, não fosse junto comigo para os momentos outros, não ficasse martelando o texto para revisar, a aula para terminar, a fonte para pesquisar, a greve para atrapalhar. Segurança e liberdade não podem ser simultâneas.

Todo mundo odeia televisão


Durante toda a minha adolescência-tentativa-de-pseudo-intelectualidade eu dizia que quando tivesse minha própria casa nunca mais assistiria à televisão, que eu odiava aquilo, que atrapalhava a minha vida, que a culpa dos meus problemas de concentração era daquele aparelho ligado o dia todo etc.

Bem, eu realmente posso contar nos dedos das mãos as vezes em que a tevê daqui de casa (que de própria não tem nada, aliás) foi ligada e não vou mudar a frase de que atrapalha a minha vida, mas não tenho como negar que todas as vezes em que vou visitar minha mãe eu assisto. Também não posso negar aquele argumento de que a mídia manipula as massas, nos diz quem devemos querer ser, quem somos, quem não somos e tal. Contudo, já faz algum tempo - graças a deus!? - que eu deixei de tomar explicações assim tão simplistas para as coisas e acredito que nada é tão homogêneo e perfeito assim.

Isso tudo só pode ser mesmo um preâmbulo para eu dizer que gosto de televisão (desde que apreciada com moderação e muito senso crítico). Não faz assim tanto tempo que eu saí da casa da minha mãe e parei de passar todo o tempo com a caixinha colorida sorrindo para mim, mas percebo hoje o quanto a minha memória e as minhas principais referências para várias coisas na vida estão relacionadas aos programas, às novelas e, principalmente, às propagandas. Perco a conta de quantos textos publicitários me vêm à mente em momentos variados do quotidiano.

Entretanto, eu estou aqui para falar bem desse instrumento adestrador de criancinhas, não é mesmo? Então, nessas minhas visitas vespertinas à casa da mamãe não raro o horário coincide com um seriado que eu adoro: Todo mundo odeia o Chris.

Sempre que eu vejo os percalços da vida do adolescente num perigoso e estereotipado bairro de periferia e numa escola onde é o único aluno negro, eu me lembro de um outro seriado que acompanhou a minha infância, pré-adolescência e adolescência (sim, nós sabemos que 1. esses seriados costumam ter muitas temporadas; 2. O sbt nunca teve pudores para repetir mil vezes a programação; 3. Nós também nunca ligamos de assistir ao mesmo episódio 50 vezes, até decorar todas as falas): Um maluco no pedaço.


Não precisa de grandes explicações para traçar paralelos entre os dois seriados, não é? Contudo, o recente sucesso do Chris entre os meus alunos - e a variedade de exemplos que consigo retirar dos episódios para abordar em sala temas como racismo, segregação racial, desigualdade e preconceitos em geral - me fez pensar na importância que esses seriados têm na construção da identidade de muitos jovens. E isso se dá pelo mecanismo simples da identificação, nos mesmos mecanismos da mídia - está lá um personagem (nesse sentido, mais o Chris, porque afinal o Will estuda numa escola particular caríssima em Bel Air) que é um garoto pobre, negro, estigmatizado e, diferente do que pretende a professora da escola, normal.

Além disso, o seriado aborda outras questões corriqueiras como a exploração do trabalho infantil, o subemprego, o bullying, este tão na moda, etc. Sem falar no divertimento que é assistir a tudo isso naquela dublagem super bem feita. Não vou fazer a propaganda completa (sim, o que eu estava fazendo era só um comentário crítico, entendeu? Eu não sou uma criança deslumbrada com a televisão, ouviu?) porque além de não gostar muito da emissora que transmite a série, não faço ideia dos dias e horários em que é transmitida, vou sempre na sorte.

terça-feira, setembro 13, 2011

De onde se conclui que nada vai dar certo. De onde se conclui que não há conclusão. De onde se conclui que não adianta ser uma das poucas pessoas do mundo que sabe a transitividade do verbo implicar ou o uso correto da crase. Não faz a menor diferença na página em branco. Eu quero trocar de mim. Eu sempre quis trocar de mim mas ninguém deixou. Eu não quero ir a lugar nenhum. Eu queria um pouco de apoio, mas as coisas sempre me parecem incongruentes e no fim das contas eu sempre sou a menina mimada. Isso não me ajuda em nada. Dizer isso não me ajuda em nada, continua a sensação de que ninguém se importa e nada faz sentido. Porque nada faz sentido e eu não faço nada a não ser construir essa minha escrita de si de desempregada e perdida na vida. Eu não tenho nenhum objetivo em estar viva e não tenho uma dose salvadora de digitalina nem uma janela convidativa. Eu não tenho coragem para nada. E continuo na minha eterna solidão. Não consigo manter um pensamento racional por tempo suficiente que me permita fazer algo. Eu não sei inglês, não sei ser submetida à análise, não quero dar o dinheiro que eu não tenho a psicólogos com cara de babaca. Vou enlouquecer sozinha, pobre e desempregada. Morrer de falta de amor e falta de motivação forte o bastante para renunciar à vida.
Eu tenho um plano. E se sair daqui agora e me arrebentar toda, tudo bem também, porque na verdade eu não vou mesmo a lugar nenhum. É que eu tô sozinho há tanto tempo que eu esqueci o que é mentira e o que é verdade em volta de mim - e o papel e o papel pra acabar.
Eu, tão farsa. Tão arquivos emprestados, entrecortados-que-nem-sei-se-têm-hífen. Eu, tão à flor da pele. Tão crise existencial. Tão sem destino, futuro, segurança, caminho, perspectiva. Eu, tão vaga, tão porra-nenhuma, poço de insegurança, página em branco, futuro incerto, horas perdidas no nada. Eu-improdutividade, concordância falha, farpas distribuídas, música repetida, ameaça viva. Eu, auto-destrutiva pela falta de fé. Falta de referências e sem nem mesmo as origens trágicas da erudição. Eu sem-destino. Eu desvio, mas sem conjugar o verbo e sabendo que não dá pra saber pelo que eu digo. Eu que nem escrevo nada, nem digo nada, sem sou capaz de enganar a mim mesma para empreender um esforço intelectual. Eu, que não nasci para ter essa palavra junto. Eu, que invejo a experiência limite, tiro onda com meu francês torto. Ensaio frases que não se concretizam. Orações longas sem nenhum período, simples ou composto. Eu, composta de meia-dúzia de argumentos diletantes. Eu, que nem sei usar essas palavras pernósticas, que nem tenho essas leituras, essa coragem, essa cara de pau. Eu, que nunca colocaria a cara a tapa, nem compraria o veneno, nem a briga, nem publicaria nos mais vendidos ou no jornal o que quer que fosse de grave. Eu não me esconderia atrás de ninguém e tampouco me exporia. Eu, com meu egocentrismo torpe que já não me aguenta já faz tanto tempo, e não tem paciência pra reinventar, inventar, fazer, simplesmente. O problema simples do sim na palavra. O elogio do sofrimento. Eu não sei me defender e fico fazendo cara de menina mimada, que arruma o cabelo e o vestido só para alguém dizer que está bem arrumado. Eu nem arrumei e também ninguém disse. Eu sei que ninguém vai dizer e o silêncio da solidão e da falta de tudo é só um desespero sem fim. Eu desaprendi a linguagem que os outros usam para se comunicar - se é que um dia eu soube. Eu perdi aquela coisa que alguém me deu para guardar e pediu que não perdesse de jeito maneira. Eu perdi a vocação para muitas coisas. Me perdi e não quero procurar num consultório de analista - e também sei que não tem mais onde chafurdar sozinha e não adianta esperar milagre e não adianta nada a não ser tentar. Coisa mais auto-destrutiva porque sem fé nenhuma. Nem tez azeitonada, nem niño pez. Os bons filmes e bons livros passam e deixam a sensação de impotência diante das coisas, da vida. Nada é tão grande quanto as minhas palavras - e eu nem nunca tive domínio de cena para um suicídio. Eu crio intrigas para me sentir viva. Preciso brigar e espernear diante do irrefreável da morte. Preciso sentir o que eu não posso viver. A experiência limite. A paixão injustificada que eu preciso justificar nos termos mais academicistas que conseguir. Mas não consigo mais cortar e colar frases velhas. Queria algo novo, algo vivo, algo intenso. Que fizesse e desse sentido. Que ardesse como faca cortando, como o desespero de se saber da morte. Eu não sei nada, eu não tenho nada, eu não escrevo nada.

segunda-feira, setembro 12, 2011

E se uma nova paixão surgir no último minuto? E se a angústia for maior do que se pensava? E se a coragem, a cara à tapa, o senso de realidade, o enfrentamento, a construção, e se tudo for ainda maior, mais denso, mais mergulhável do que se pensou? (Sujeito indeterminado: minha mente estreita, egocêntrica, limitada e com menos leituras do que poderia).

A gente sempre sabe que a vida é maior, que o horizonte de possibilidades é mesmo um horizonte inatingível. Mas continua buscando e descobrindo novas tonalidades de poente no meio da estrada.

Eu quero tentar.
Sonhei que a vida era um sanduíche que eu engolia com náusea.
Precisando rever minhas metáforas ou tomar um remédio pro estômago?

quinta-feira, setembro 08, 2011

Ninguém escreve aquilo de que se lembra. Talvez o que não sai da cabeça. Porta-esquecimento. Expurgação. Escrevo para não escrever. Preciso de objetividade. Simples-fazer. Simples-fazendo. Simples.

Trilha sonora

Um apelido que se desdobra em doença porque tinha de ser, porque as teorias se desdobram em coisas mais. Encontrar caminhos, procurar caminhos, perder caminhos, caminhar. Gradativamente. Cada passo. Repetitivamente. Falta gente, uma boa música e uma cerveja gelada no fim do dia. Quando não tem começo não termina e quando termina antes de começar todos os dias só porque tem trilha pronta. Sonora, porque as solas dos sapatos estão novas e tilintantes esperando que alguém lhe diga aonde ir.

Sim, porque saber apenas a transitividade do verbo nunca serviu de nada a ninguém. Espera sentada, olhando os pés que não tocam o chão no auge de seus cinco anos de idade. Sacudindo-os de expectativa, como quem sabe que vai receber um elogio. Sempre esperando uma veneração que lhe dê sentido. Um sorriso de aprovação, uma estrela no caderno.

O silêncio e a espera lhe sorriem de volta, mas um sorriso irônico dizendo que não há o que esperar, que caminho a gente trilha com os próprios pés. Observa-os inquietos e incapazes. Conclui que precisa de um novo par de sapatos que estes não estão condizentes com a situação. Desce da cadeira com esforço - é mesmo alta - enquanto grita com os pulmões cheios para alcançar a cozinha:

- Manhêê! Me compra um novo par de sapatos?

Antes que a resposta venha, substitui a expectativa por uma aflição fingida sobre a cor dos ditos.

quarta-feira, agosto 31, 2011

Deu vontade de escrever alguma coisa séria. Mas é que eu tenho preguiça. Tanta preguiça quanto se pode ter às duas e meia da manhã, depois de ter dado aulas durante toda a tarde e preparado aulas durante toda a noite. Pode ser que seja só cansaço misturado ao hábito de ser muito dura comigo mesma. Às vezes eu sou.

Sou quando acho que todas as coisas são grandes e eu não posso transformá-las em pequenas e simples. Sou quando me recuso a ser uma pessoa comum, que simplesmente faz as coisas e vive os dias - tento me convencer de que tudo precisa ter uma razão maior, um sentimento mais fundo. Um egocentrismo mal trabalhado? Talvez.

Mal trabalhado e mal resolvido porque me faz remoer por eras os pequenos detalhes e deixar sempre o mais importante para quando as forças - e o saco, a paciência - já se exauriram. Tudo termina capenga, pela metade, ou não termina mesmo. Transformo as coisas em grandes dramas, pinto de dramas épicos detalhes pelos quais todo mundo passa na vida. Todo mundo passa, sobrevive e parece que nem dói.

O problema pra mim é esse. Para mim sempre dói. Nunca é tão simples. E sempre é cheio de palavras como sempre, nunca. Como uma descrição de uma criança de quatro anos de idade.

Acontece que a paciência acabou até para a explicação cotidiana de que tudo (olha ela aí de novo) se resume ao fato de que eu sou uma criança mimada. Acontece que tudo não existe, nem fato - e se espremer muito, nem explicação, eu ou existir.

segunda-feira, agosto 22, 2011

Asas cortadas


Me transformando em um cisne e a dor é necessária. Tudo é necessário, perigoso, divino-maravilhoso - na música é claro. Na vida real é a pele se abrindo, a carne rasgando, os rasgos alastrando em dor insuportável. Valerá à pena? Perguntaram. Alguém respondeu com um verso escrito à caneta bic roubada e já falhando: Ritos de passagem passam; há-que passar. Parecia um provérbio antigo ou sorte de biscoito oriental. Desses que não faz sentido porque faz parecer que a nossa vida devia ser maior do que realmente é. Devia ser mais cifrável e dizível em provérbios.

E a alma? Se perguntou de que tamanho estaria agora. Teria crescido ou encolhido nesses tempos todos? Essas coisas de penas, almas e valores eram muito para ela. Eram muito à essa altura da vida quando não se tinha quase nada. Só tinha uma meia dúzia de palavras que poderiam ter sido grandes num passado, mas já lhe tinham chegado gastas e desbotadas. Não tinha muita cor nem para onde correr.

Entrou no carro esperando estradas longas, noites frescas, ventos revigorantes. Faltava dar a partida. Não tinha carteira, gasolina, mapas. Não tinha nada além das asas que cresciam discretas ferindo as omoplatas. Tinha que matar uma parte - era o que pensava enquanto saía batendo portas pequenas demais para o tamanho de sua fúria. Quis correr por dentro de uma floresta densa ou um campo aberto até as pernas obrigarem a parar. Quis sentir o pulmão vivo, ofegando, pedindo para continuar vivo, mostrando que lutaria por mais um fôlego cada vez que fosse necessário.

Do lado de fora do carro o concreto lhe sorriu irônico. Muitos carros não lhe sorriram nem expressaram nenhum sentimento, parados sobre o asfalto. Uma viatura da PM à certa distância mostrou que não teria dado certo dar a partida no carro. Também não havia para onde correr. Nenhum precipício no final da floresta imaginária.

Os pés ainda agitavam-se pedindo passos firmes, fortes, ritmados e constantes. Ou que levassem a algum lugar apenas. Qualquer lugar. Que a levassem. Já não queria estar ali tão presa no desespero tão interminável, escuro, envolvente. Caiu de desespero no chão frio. Quando percebeu, tinha uma lama pegajosa em volta. Percebeu que era ali que devia estar e a opção era descobrir que um dia as asas terminariam de crescer. Doeria muito? Demoraria muito? Perguntaram. Ninguém respondeu.
Sempre uma tentativa de reconciliação. Sempre uma vontade de reencontrar o que nunca tive. a tal sensação impossível de estar em casa no mundo. Aceitar o passado, simples-fazer as coisas, o que é preciso, todo o tempo. Fazendo no automático? E o sentido, como faz? Vai pra onde? Eu já nem quero uma série de coisas e preciso sim de respostas externas porque de dentro parece que é tudo loucura. Sempre é e sempre tem palavras grandes na falta de achar o tom e a conciliação também com as coisas e palavras pequenas. Pequenos prazeres, pequenas coisas. E tudo deve passar.

quinta-feira, agosto 11, 2011

Falta a abdicação do ofício. O arregaçar as mangas e assumir o esforço - e depois o risco. Falta entender que escrever é reescrever, treescrever, talhar palavras num trabalho que não tem a beleza, a áurea que se imagina. A vida mesmo não tem. Não tem glamour no processo. Falta a conformação para encontrar a beleza pura, a beleza real de assumir as próprias imperfeições. Como olhar no espelho, como ver surgirem os calos nos dedos, as olheiras nos olhos.

Como um exercício escolar, diferenciar a estética do belo. Aprender a função que têm nas palavras e que função não se desprende do maior.

(E eu tão pequenininha...)

Poema em linha reta

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

[538]

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.