Páginas

segunda-feira, dezembro 31, 2012

Parece que o último dia do ano torna obrigatório fazer uma espécie de balanço. Traçar metas, planos. Vestir calcinha, pular onda, fazer pedidos. Assumindo o maior dos clichés, eu quero é agradecer por ter sobrevivido a esse ano que pareceu tão interminável. Ano intenso, necessário, dolorido, vivo. Ano de retomar rédeas, de galopar em alta velocidade e sozinha. Ano de preparar terreno, fazer a casa, lavrar a cara e a alma para a vida. Que venha.

Dois mil e doze já teve tanta reflexão, tanto refazer, tantas metas, projetos, planos que hoje o balanço que eu quero é o de parque infantil, bem alto e bem forte para sentir o vento no rosto.

É isso, que o próximo ciclo traga bons ventos e acima de tudo vontade para viver cada um dos dias do melhor jeito.

O saldo sempre é bom.
a fome.

sexta-feira, dezembro 14, 2012

Pá furada

A poesia grita em duelos nas ruas
povoadas de almas desertas
que se desconhecem
mas já se viram n'outras noites e carnavais

Não sei se tem mais poeta
ou vendedor de amendoim
no pouco espaço entre as mesas e corpos

Não sei se eles têm mais fome
de comida ou de voz
Não sei se eu tenho mais culpa
ou sede

Sei é que um pouco de arte passa
Aos borbotões
nas calçadas sujas de suor e solidão

Não sei se é mais fome ou angústia

Não sei se ele põe mais orégano
ou desenhos de capa
se faz promoção-três-por-cinco
ou declama alto pr'as menininhas
cheias de vontade que alguém lhes diga
qualquer coisa que pareça vida

e eles dizem
mesmo que seja essa vida parca,
esses dias consecutivos,
esses brindes aguados em copos vazios,
esse tesão forjado,
essa teatralidade canastrona,
essa chuva que cai dos olhos
no verso mais cliché
que se diz com lascívia.

com seus livretos curtos
de papel xerocado na gráfica da esquina
- aquela mesma dos balcões antigos -,

com seus cones de papéis coloridos
e higiene duvidosa

eles jogam uma pá de terra
na culpa
e uma pá de letra
na cara dura

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Dez mil destinos

"Dou gargalhada, dou dentada na maçã da luxúria, pra quê?
Se ninguém tem dó, ninguém entende nada
O grande escândalo sou eu"
Escândalo (Caetano Veloso).

Comprei minha virgindade por nove reais e noventa e nove centavos nas Lojas Americanas. Ok, a história não é assim. Comprei a trilha sonora do dia em que perdi a minha virgindade. Não sei se as pessoas têm isso. Parece coisa de gente psicótica lembrar a música que estava tocando quando aquela pelezinha sem importância do seu corpo deixou de existir. Mas o caso não é exatamente esse, não é o pedacinho de pele assim como não é a música que estava tocando no momento exato em que. É do início da minha vida sexual que estou falando - desde então já se vão alguns anos - e de um disco que fez parte desse processo.

Eu ouvia sempre o mesmo disco e transava sempre com a mesma pessoa - coisa que só se faz mesmo quando começa a vida sexual. Tava ali, entre um livro de receitas e um filme da Audrey Hepburn, enquanto eu tentava fugir o mais rápido possível das musiquinhas irritantes de natal: a capinha laranja e preta querendo combinar com esse período - que deve ter uma explicação astrológica - de reconciliação com todos os passados possíveis.

Esse momento de andar na rua achando que posso tropeçar numa lembrança em qualquer esquina que vem acompanhado dessa certeza serena de que, em caso de tropeço, vou pegar nas mãos a lembrança, tirar o pó e colocar em alguma prateleira da memória. Assim arrumadinho, limpinho, como deve ser.

Como se pode imaginar, comprar o disco não é só comprar o disco. É chegar em casa e colocá-lo para tocar num cenário totalmente diferente do que ele conheceu - do que eu conhecia. E parar agora para ouvir tentando lembrar sem conseguir daquela menina que sonhava com novos horizontes e com uma vida sem medidas. Posso não lembrar da menina, mas a sequência das músicas ainda é familiar. Daquele jeito anterior ao modo 'aleatório', sabe? Quando as notas finais de uma música parecem pedir e anunciar a seguinte. É assim.

Nem tão longe que eu não possa ver, nem tão perto que eu possa tocar, depois de uma vida mais confusa do que a América Central, depois da pressa que liberta e leva a outras tantas direções, depois de saber que ninguém é igual a ninguém e de ficar parada olhando-me para nada e nunca ter ido ao Paraná, depois de saber que tudo passa e as pessoas realmente acabam passando por aqui, depois de saber que o dia desses dos encontros casuais sempre chega; de acordar cedo e tarde, de aquecer a água sem querer que ela ferva; de comprar e entulhar instrumentos que poderiam ter sido uma guitarra elétrica; depois de saber que sempre há novos horizontes e que o carnaval, afinal sempre chega. E saber que mesmo que eu seja uma pessoa completamente diferente agora, o disco ainda é o mesmo, com suas letras rasas, óbvias e som sujo.

Os anos passaram e os sonhos também. As trilhas sonoras foram outras tantas (e as mesmas músicas já embalaram outros amores também), as melodias, harmonias e letras mais doces, a vida tão mais real e saborosa, mas fica ali na memória, uma memória barata, mas que não se encontra todo dia. E deixa transparecer essas metáforas envelhecidas e graves. Minha pele teve tantos outros pedaços em que se descobriu ao longo do tempo...

terça-feira, dezembro 04, 2012

Sem Ana, blues

Sabia que um dia chegaria a hora de postar esse conto.

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, perguntando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma correspondência, a vizinha de cima à procura da gata persa que costumava fugir pela escada, ou mesmo alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava pedir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.

Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais. Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente endurecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar - então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão à Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés - ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarujá ou Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, tão disponível & natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.

Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, irrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.

(em Os dragões não conhecem o paraíso de Caio Fernando Abreu).

Cores



Há tanto tempo que as palavras
Não se sabem quebrar nas linhas.
Mesmo quando se escondem em
melodia fina,
dessas que povoam manhãs de sol,
preferem o desespero urgente
de quem não tem ponto
às vezes nem espaço
- como o que não existiu entre as gentes
enquanto foi-se formando entre os corpos.

As letras se somam e se separam
na mesma vontade
que é só um jeito de preencher
a desvontade de sempre.

Era para encher o mundo ao redor
Mas não se colore na primeira pessoa,
aprendi recentemente.

Resta preencher com timbres doces
e co-lo-ri-dos
as tais manhãs e tardes adjetiváveis
com o pincel na mão,
potes vazios
pros quais mal se olha

e a cara cheia
de quem sabe que a tela é espelho.

segunda-feira, dezembro 03, 2012

Enrubrescendo

Qualquer coisa que povoe e sinta. Que possa colorir lábios, faces, cotidianos. Que faça sentir, mesmo que não seja real. Aliás, sempre melhor que não seja. A verdade é que "num deserto de almas, uma alma especial reconhece de imediato a outra". Ou não reconhece. Ou não é alma se não tem corpo. Tem aquele problema de entendimento, lembra? Não tem importância... É só uma história que não se escreve mas que fica povoando a mente, desviando daquilo que é importante, colocando a poesia no caminho. Às vezes é preciso um pouco menos de poesia pra conseguir viver, disseram. Não sei se deu pra reparar minha cara estarrecida.

Overdose de versos de um filme que eu já vi. Já sei como acaba. Já sei que depois não tem graça e sei também que eu estou sempre me expondo e que esse também é um jeito de preservar, como tudo agora é. Os dias são somatórios de engolir tudo e depois cuspir. Na cara se for possível. Escrever versos que depois rasgo, como na música. É preciso ter um a-partir-do-quê para construir. Espalho-me em versos ao redor e presto toda atenção no que eles me dizem para mergulhar nesses misticismos bobos, nessa ilusão falha de quem sabe que no fim das contas não adianta. São outros universos, corpos incompatíveis com esse falso e cliché de entendimento de almas.

Não há entendimento para além do teatro. As cortinas fecham, tornam a abrir e vira sempre o mesmo engodo. A mesma falta de vontade que não se rompe nem parece corruptível pelas minhas falsas promessas. Um dia cumpro e tudo volta a se perder nos eternos ciclos ou cílios.

(Não se destina a nada, mas se eu disser isso eu bem sei o que acontece)