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segunda-feira, outubro 29, 2012

Tecendo finos fios

Ao som de Assinado eu (Tiê).

Dispensa dedicatórias.

Tava nos fios dos cabelos. Não de um jeito bíblico, aquela baboseira de Sansão e Dalila, com vinganças e dramas - não que não tenham havido vinganças e dramas. Ambos abundaram, se é que pode-se dizer assim. Com profundidade, força e todo o sofrimento que se tem direito. Uma questão de proporção que talvez muitos não entendam, mas a dor precisava ser de uma forma equiparável à toda felicidade que foi. Foi. A distância precisava ser equiparável à toda proximidade que foi. Foi. - o tempo verbal fica só como mais uma ironia.

Era preciso percorrer no sentido inverso todo um caminho para construir outros tantos, remar com força contra a corrente, remar sozinha. Sentir a dureza do mar em cada braçada, o frescor das ondas em cada mergulho, o gosto salgado inundando a alma, a força das ondas batendo no corpo sem derrubar - e mostrando que do outro lado também havia uma espécie de força inimaginável, quem suporia? 

Do mesmo jeito que foi necessário e inevitável todo o antes. Mas agora, de um jeito imperceptível e improvável como sempre é, o presente virou passado, o passado virou passado mesmo e é até possível construir um presente - diante dos quais é sempre preciso fazer alguma coisa.

A gente faz, a gente vai minando aos poucos a defesa e a distância construídas com toda força e todo esforço possível. Era a única forma de ter alguma preservação, a única forma de construir algo com os cacos que ficaram - há quem diga que já é possível vislumbrar um vitral bonito.

Contudo e apesar de, os mais atentos observarão que nunca mais seria possível para uma cortar e para a outra lavar os cabelos.

sexta-feira, outubro 26, 2012

Deve ser bom

Pensou ter sentido alguém tocar seu ombro e se virou brusca, como quem desacostuma ao toque, desde a definição até a comprovação empírica. Do teclado, do telefone, da pele - da pele em outra pele. O falso palíndromo soava distante como um sussurro, um arrepio ou um vento que passa e dá aquela sensação de que alguém tocou-nos o ombro. Mesmo desconhecido o verbo se conjuga, como só as abstrações fazem, como quem resolve uma questão matemática sem que para isso precise macular seu pleno desconhecimento de tudo.

O mundo é um eterno desconhecido. Uma caixa pequena cujas paredes a gente não rompe, às vezes pinta um desenho bobo, abre um buraco e coloca uma pessoa dentro.

As pessoas saem e as madrugadas insones continuam sem sentido.

O insuportável é que nada é insuportável. A gente sempre vai se acostumar e os dias continuarão a nascer um após o outro.

sexta-feira, outubro 19, 2012

No tempo das cartas



Rio de Janeiro, 19 de outubro de 2012.

Moças,
 
Ontem de madrugada eu fiquei pensando no tempo em que se escrevia cartas e na nostalgia-cliché e sem fundamento que eu sempre tive dele. Imagino que eu pertença à primeira geração que não escreveu cartas, por isso fica essa vontadezinha. Talvez nem seja a primeira, mas deixe-me construir artificialmente a minha importância no mundo. Nessa atitude cotidiana que é a construção da memória, tenho a sensação de que eu passei a infância inteira esperando a minha hora de fazer aquela coisa-de-gente-grande e aí, quando chegaria a minha vez, alguém danou de popularizar o computador e acabou com a minha festa. Quase como quando eu era mais nova, via as minhas irmãs vivenciando coisas e esperava ansiosa a minha vez para dar de cara no conhecido muro da frustração - como quando eu esperei que chegasse a minha vez de encenar Calabar na escola e aí veio a Gota d'água* no lugar...

Voltando às cartas, eu até tentei. Algumas pessoas tentaram comigo, fizemos projetos, planos, escrevemos algumas bem artificiais. Teve até o tempo de tentar adaptar essa vontade louca e anacrônica aos novos tempos, mas não adianta, emails são frios. E ontem à noite, quando fiquei pensando no tempo em que se escrevia cartas, teci algumas considerações definitivas sobre isso - dessas que a gente tem pouco antes de pegar no sono e que na hora dão uma certeza categórica de que está naquilo a solução para todos os problemas da humanidade.

Na hora, eu pensei que se fosse o tempo das cartas, eu levantaria e batucaria tudo isso na máquina de escrever. Serviu como desculpa para a minha preguiça, mas as constatações sobreviveram à luz da manhã. Fiquei pensando que o legal das cartas é você dizer uma coisa influenciado por uma determinada atmosfera de emoções e ter a certeza de que quando o destinatário ler, já se estará sentindo coisas completamente outras. E aí a pessoa responde de um jeito, porque aquela atmosfera a toca de um jeito e quando a resposta chega você pensa "caramba, eu tava assim tão mal nesse dia para o fulano ficar tão preocupado?", mas você não sabe, porque aquilo que você escreveu não está na sua pasta de enviados. Só a memória mesmo... essa memória que apaga as coisas difíceis de lidar e substitui por outras, coloca infinitas repetições que nos desviam daquilo que é realmente importante. E aí a gente responde que 'tá tudo bem, que não é o caso para tanta preocupação.

Ontem eu tinha destinatários, eu tinha coisas grandes e graves para dizer. Tinha também coisas bobas, comentários vagos e ingênuos sobre filmes e livros, conselhos categóricos sobre a vida, agradecimentos grandes para coisas miúdas e doces. Eu não levantei para escrever, mas eu confiei que um abraço e um beijo transmitido à distância pudesse dizer o valor que tem um pequeno gesto, uma pequena presença que nem é tanta quanto poderia, deveria, quanto a vontade quer. Eu escreveria a vocês que sinto muita falta de ter vocês mais perto, de conversar mais. Isso. Que eu gosto muito de conversar com vocês. Antes de qualquer coisa (não que o afeto seja uma coisa pequena), mas que a amizade pode ser inspirada por muitas coisas diferentes, nesse caso é muito pelas coisas que é possível dizer a vocês e as outras que eu ouço de volta. A escolha do verbo ouvir é pra dizer que se eu tivesse escrito uma carta ontem, ela diria que a sua voz fez falta, ainda mais quando eu soube que sua garganta não ia bem. Cartas têm isso, não é? Preocupações cotidianas, votos de boa saúde, porque a gente nunca sabe como a pessoa vai estar quando receber. Por isso - e por muito mais coisas - deixo os mais profundos desejos de todas as coisas boas.

Quando eu acordei, entendi que toda essa calma, toda essa gratidão e, principalmente, toda essa ludicez vinham da rara sensação de conforto que vocês deixaram ao sair [mesmo que não tenham vindo todos, vocês de alguma forma vieram todos]. Entendi que às vezes, tudo o que eu preciso é de uma boa refeição e um banho quente pra recomeçar a vida.

Obrigada por continuarem no recomeço.







* Calabar e Gota d'água são peças de teatro escritas por Chico Buarque, a primeira em parceria com Ruy Guerra e a segunda com Paulo Pontes.

quarta-feira, outubro 17, 2012

Machismo nosso de cada dia

É sempre adequado reagir diante de uma situação de machismo? Talvez o meu questionamento pareça covarde, mas foi isso o que fiquei pensando hoje enquanto voltava para casa bastante chateada com o tal do 'machismo-nosso-de-cada-dia'. No de hoje eu calei. Em parte porque na situação não cabia, em parte porque ouvi de uma amiga um dia desses que eu devia parar de ser chata, pois ela gostava/gosta de ouvir cantadas na rua.

Hoje, quando engoli minha pílula diária de misoginia, de alguma forma ficou claro para mim que a vítima da situação (sim, para mim há vítima e agressor, porque sim, há um tipo de violência) se sentiu lisonjeada com o ocorrido - e imagino que essa reação, somada à minha não-reação, foram os responsáveis por esse nó na garganta que me acompanhou até em casa e que continua aqui até agora.

Sei que contar publicamente o caso pode ser uma forma de colocar a cara à tapa e receber muitas críticas ao meu feminismo da-boca-pra-fora, pouco combativo ou o que quer que seja. Bem, sem intenção de defesa prévia, digo que eu já me fiz todas essas mesmas críticas enquanto voltava para casa e, sem solução ou rótulo, escrevo sempre como uma forma de expurgar, tentar inteligir com palavras.

Explico:
Estava na aula de uma das disciplinas do mestrado. Uma das cinco alunas que compõem a turma apresentava os textos escolhidos pela professora para o tema a ser discutido. Vale observar que a turma é composta por cinco alunas e um aluno, bem como que quem leciona é uma professora. Ao final da apresentação, todxs fizeram suas observações, perguntas, comentários etc., como é de praxe. Foi em algum ponto desse momento da aula que o aluno fazia as suas considerações e alegou sentir falta de um determinado aspecto na fala encerrada. Rapidamente, a professora informou que o tópico havia sido abordado pela aluna e que, possivelmente, ele não tinha prestado atenção à hora.

A frase que veio em resposta pareceu incomodar apenas a mim naquela sala. Foi algo como: "Acho que eu me desconcentrei com a beleza da apresentadora". Nesse momento, eu acho importante esclarecer que a doutoranda em questão é uma mulher jovem, alta, loira e de olhos claros, ou seja, enquadra-se no padrão de beleza vigente em nossa sociedade. Qual a parte que não encaixa? O fato de uma mulher considerada bonita ocupar um papel ou estar numa posição que representa poder e inteligência.

Me vieram à mente as alegações usadas à época das lutas pela inserção das mulheres nas universidades, no mercado de trabalho, enfim, no espaço público: dizia-se que a beleza da mulher, ou melhor, a sua natural sedução, distrairiam os homens da racionalidade, das tarefas comumente desempenhadas com eficácia pelo lado racional da humanidade. Dizer que a beleza distraiu quer dizer que a presença feminina sugere obrigatoriamente beleza, sedução ou que só se deve permitir que pensem as mulheres que estejam fora dos tais padrões de beleza, ou que o papel da mulher é apenas enfeitar o universo masculino. Pode parecer que estou exagerando, mas se fosse eu que estivesse apresentando, que tivesse me esforçado para fazer uma pesquisa profunda sobre um tema, trazido questões, exposto e debatido ideias por mais de meia hora, ficaria muito indignada e ofendida de ouvir que todo o meu trabalho fica apagado por um caráter estético.

Pode ter passado despercebido, pode ter soado como um elogio, mas eu enxergo nesse comentário a demonstração do quanto o machismo está longe de ser extinto do nosso cotidiano. O quanto o ambiente acadêmico das ciências humanas está longe de ser um espaço de reais questionamentos, debates, transformações sociais - ou que pelo menos essas mudanças ocorrem com muito vagar. Que a presença feminina, ainda que majoritária em algumas situações, como foi o caso citado, não necessariamente significa que a lógica machista da sociedade está sendo de fato modificada.

E eu fiquei pensando se não falar nada não foi uma forma de legitimar, sei lá, perpetuar esse tipo de atitude. Fiquei pensando, mas ainda assim não disse nada. Vim embora pensando nisso, apenas... e talvez continue a pensar até que aconteça o próximo episódio que, infelizmente, não duvido que tarde. Espero então ter mais profícuas reações.

terça-feira, outubro 16, 2012

Automodelação

Ao som de Girasole (Giorgia).

Na literatura é abolir o eu, na vida real é a medição. As datas nunca estão certas, mas desde que há essa vontade de poesia já se vão sete anos. Dizem que esse é o tempo necessário para que todas as células invisíveis do corpo já sejam outras (as visíveis também). Já são outros os cenários. É outra a pele que já escolheu outras datas para ser trocada; a voz, os cabelos e os amores já foram tantos nesse meio tempo. Acabou o colégio no meio desses versos desabafados e afobados. Foi uma faculdade inteira e agora um mestrado de palavras que fogem de outros papéis e de outras histórias para transbordar aqui no eterno refúgio das horas loucas. Não teria como percorrer hoje o percurso redundante de cada uma das células invisíveis, dá pra percorrer palavras - e mesmo os silêncios.

Alguns eternos retornos pegam assim pelo pé e me fazem ver que de repente alguma coisa transcende as tais células que se foram pelo ralo do banho ou na lâmina da faca. Há muitas promessas e muita vontade de vida que a gente vê em tantos textos mal feitos, tantos versos mal rimados e tantas palavras escolhidas na pressa. A boneca já mudou muito de corpo, cor e roupa. O nome já deixou e recobrou os sentidos algumas vezes.

Há fontes falidas de inspiração que se espalham por essas páginas. Alguns versos escritos pra um ou uma que foram depois canalhamente usados para outros e outras. Tem um monte de gente e um monte de personagens que eu invento pra me acompanhar. Vou enchendo a casa pra ver se me sinto. Mas como gente é essa coisa inventada e sem autorização que se transforma em comentários anônimos, em elogios abertos, em leitores atentos e naqueles que sempre querem se reconhecer de alguma maneira - o que fica são os fantasmas. Vão grudando no meu espelho e satisfazendo duplamente os egos, duplos cegos que desconhecem igualmente meus testes e minha cegueira. Vão povoando as horas, preenchendo as noites e, principalmente, as linhas. Desenham círculos frágeis no vento que a gente desmancha com os dedos e mostra no arco dos cílios que está com os olhos abertos para o que vier. 

São personagens de mim mesma que eu invento. Talho em madeira fina as máscaras que bem caberiam no meu próprio rosto. Coloco-lhes à força e depois não só não querem tirar, como também querem que as minhas mãos permaneçam ali coladas à madeira fria e fina, através da qual é possível sentir o calor da minha pele - e também da sua. No fim das contas, sendo boa ou ruim, o que eu quero é poesia.

As damas da noite recolhem o seu perfume com a luz do dia



"Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada".
(Trecho do conto Dama da noite, de Caio Fernando Abreu).



Podia ter acabado num convite para uma dança do qual ninguém lembraria já que a dança sequer aconteceu. Quer dizer, aconteceu. Aconteceram várias enquanto você observava de longe o movimento que faziam os cachos dos meus cabelos. Não, não era isso. Você observava os movimentos só, sem nem saber ou se importar com quem eu era. A pista rodando e eu rodando junto com uma depois outra e outras tantas de quem também não é possível lembrar. As moças e as músicas.

Você olhava de fora, à margem, a cara cheia de quem diz, "Olha, eu não sei" e oferece um sorriso perambulando entre a doçura e a educação. A vida segue e a roda continua rodando e toda a gente junto, dentro.

Quem olhasse sua cara de fora - digo assim 'quem olhasse', porque eu mesmo não olhei, eu estava dentro, como todo mundo - diria que a sua vontade era rodar junto também, mas as pessoas nunca sabem.


É que ninguém sabe - ou todos sabem e nunca é importante saber - que a vida é a polpa de onde se tira com custo, sangue, suor e pequenos gritos o substrato para a literatura. Essa coisa inútil, impalpável, essa coisa de quem não tem nada de concreto. Eu nunca disse que tinha. E também quem sou eu para me achar li-te-rá-ria? 

A pergunta não era para ser realmente respondida. A vida não era pra ser real. Não era pra ser, entende? Chega um dia em que a gente vira personagem da própria história e aí... e aí não tem jeito que dê jeito. Não tem vida que dê fim.

Quando eu fui atrás de você, no entanto, não era no intuito de encontrar uma brechinha e aprender a tal palavrinha secreta. O que eu queria era te tirar dessa roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar. Queria só quebrar, como se diz?, o pro-to-co-lo.

Eu disse que não sabia rodar misturando feito cachaça e cerveja essas minhas referências que no fim das contas ninguém entende. Enchi o copo e te disse que viver é melhor do que entender, que criticar pode ser melhor do que propor - ou alguma coisa parecida com ou completamente diferente disso. Dissemos coisas porque era preciso dizer, era preciso quebrar o silêncio que se formava com o recolher da música e com o fim dos pretextos e com o vazio que fica na mente quando o que se quer é só apresar as coisas. E falamos essas coisas vagas, vazias, essas frases que a gente encontra para preencher o tempo entre o primeiro copo e a primeira transa. Dissemos, andamos, fomos.

Eu acordei sem saber a que horas você teria saído. Poderia até pensar que foi tudo sonho, mas isso não chegaria a ser um pensamento e sim uma lembrança. Alguns vestígios pelo chão e alguns cheiros ainda presos ao lençol que você mal desforrou me diziam que não.

E não adiantava tudo o que me diziam, não adiantava a cena, não adiantava a música, as coisas no lugar e as tais coisas todas que você disse, que a gente disse. Eram só essas frases que a gente usa para preencher os tempos e espaços que separam a cama do primeiro copo. O meu primeiro havia sido cerveja e o último cachaça. Você parecia ter bebido outras coisas e vindo de outros mundos. Mundos que deixam as portas abertas quando saem e sabem que isso não é um aviso de volta.

Esse nunca mais ficou rodando na cabeça só o tempo que durou a ressaca, como uma melodia fina que se desmancha no ar durante a manhã de segunda-feira.

quinta-feira, outubro 11, 2012

"Por favor, me reconheça"

Ao som de Amor, meu grande amor (Frejat).

Às almas incomunicáveis.


Eu achei que se eu ficasse olhando para a porta você viria. Eu já não sabia dizer há quanto tempo esperava. Não saberia precisar coisas imprecisas como a cor do céu, talvez a tarde já tivesse caído, o sol tivesse baixado. Devia ter uma claridade bonita lá fora, a luz poderia bater como um tapa no meu rosto e desfazer essa expressão desesperada de olhos vidrados na porta.

Já fazia muito tempo que eu estava ali e eu sabia que você não vinha. Talvez tivesse ficado preso no trânsito, quem sabe um acidente ou apenas um desses imprevistos inescapáveis. O celular mudo em minhas mãos sugeria algo mais grave e impeditivo. Se não viesse, eu tinha alguma certeza rasa de que você ligaria, pensei abusando de minha própria credulidade.

Há imprevistos, obstáculos e outras coisas absolutamente contornáveis.

Eu pensava - digo isto por pura força de expressão, posto que não havia uma ponta sequer de racionalidade ali. Se houvesse, eu piscaria lentamente as pálpebras cansadas e me libertaria da tarefa inútil. Repito que não havia nenhum tipo de racionalidade - que talvez você tivesse dificuldade de me ver quando entrasse por aquela mesma porta. Eu poderia parecer imperceptível em meio a tantas pessoas e mesas, por isso me posicionei estrategicamente próximo à porta, meio de frente, meio de lado, pronta para abrir um sorriso quando você chegasse e me visse. Eu queria que você chegasse e me visse. Queria que você visse que eu estava ali esperando durante todo esse tempo com a minha melhor cara de desespero.

Eu tinha um milhão de coisas para dizer e as coisas pareciam querer ser ditas a qualquer preço, mesmo sem você aqui. À essa altura, nem faz sentido dizer que você não apareceu, tamanha a obviedade disso.

Eu olhava aflita a calma das pessoas em volta, engolia em seco puxando de volta ao estômago as frases todas, imaginando se eles percebiam, se eles sentiam no ar ou se era possível ver nos meus olhos. Eu sequer sabia dizer quem eram os tais eles, mas tinha a sensação de que sim, todos viam, percebiam, sentiam no ar o cheiro. Recebia de volta algumas expressões de incompreensão, desprezo, perplexidade, medo. Expressões que não se convertiam em ações mais concretas do que aquele afastamento sutil do corpo ao passar perto da mesa.

Eu amaldiçoava os tempos pós-modernos, os cerceamentos e as repressões nossas de cada dia enquanto alternava o olhar entre a porta e o aviso de proibido fumar. Frases de bonitas paredes francesas percorriam minha mente numa velocidade que eu chamaria de superior à velocidade de luz por pura provocação no vazio. Fato é que eu não tinha meios de mensurá-la, a velocidade da luz.

A vertigem do pecado me percorria os poros e transformava a ansiedade desesperada em ódio. Levantei e saí com a mesma irracionalidade de antes. Cruzei rapidamente a portas dos fundos tentando passar despercebida enquanto você adentrava esbaforido o salão principal, os olhos também desesperados percorrendo as mesas à minha procura.

Na rua, o vento bagunçou meus cabelos, mas não me impediu de acender um cigarro.

ARTE DE AMAR


Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

segunda-feira, outubro 08, 2012

Página 249

"Olha, estou escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não achei que ia conseguir dizer, quero dizer, dizer tudo aquilo que escondo desde a primeira vez que vi você, não me lembro quando, não me lembro onde. Hoje havia calma, entende?".

sábado, outubro 06, 2012

Instantâneo

Então nem toda poesia é palavra. Nem todo prazer é instantâneo. Nem tudo é hoje e agora. Não se afobe não, que nada é pra já. O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio. Mas quando a gente tem a certeza bruta de que não é amor, espera pra quê? Quando a gente se vê fazendo e se vê não fazendo o que já foi tão simples...

A gente se monta em imagens que só virão depois. Desenha cenas e se confunde na brincadeira do querer não querer. É que tem tanta coisa envolvida, tem tanto sangue escondido nas entregas mais pequenininhas que tirar o olhar de diante do espelho já parece algo impossível.

Eu poderia te dizer se valesse a pena, mas não vale. Você não quer ouvir e também não tem nada com isso. E eu também não quero dizer. E esse não querer é que se desdobra nesse marasmo que não avança espaços, que estanca o gesto ao perceber que, afinal, teu cheiro é conhecido.

Acontece que não dá para dizer assim fácil que não vai haver ninguém para me machucar se for necessário me tirar uma grande dor. Ninguém parece disposto e a dor tá aqui. A dor é outra. É aquela mesma de antes e é tantas mais que você colocou junto apesar de ter prometido que retiraria a outra. E no fim ficou tudo tão sem sentido quanto as frases mal escritas que me rodeiam, me rondam como feras famintas à espreita.

Não vai aparecer ninguém para me obrigar a tirar as mãos da lama do poço, me obrigar a lavar as mãos e ir jantar antes de pensar em suicídio. Os pensamentos sendo todos falsos, ninguém vai entrar na onda, partilhar o desespero e desfazer as maiores angústias com um único abraço. Não há sequer felinos que distribuam amor e esperem amor de volta. Não há amor. Simplesmente não há amor nenhum, ainda que hajam tantas outras coisas. Há esse oco, essa descrença que povoa os dias.

sexta-feira, outubro 05, 2012

Não existe verso simples e eficaz.
Não é esse o papel dos versos.

Talvez seja das músicas, elas encorajam, enchem a cena daquela atmosfera de coragem quando a gente acha que já não é mais possível. Uma melodia qualquer perpassa a água do banho, os perfumes da pele e as roupas que a gente veste pensando em despir.

Quando o relógio ameaça dali, não dá para brincar com palavras. Elas carecem de tempo, cuidado, arrumação. Precisam ser colocadas na posição certa, descolocadas, desacertadas. O tempo escasso só permite que se pense em músicas, dessas que já vêm com os sentimentos prontos. Que a gente também veste junto com a roupa que vai despir.

Os refrões podem ter palavras fortes, melodias preenchedoras, notas marcantes como as de um vinho. Podem ser espumosas como cerveja. Podem ter sabor. Aliás, conhecido o cheiro, este qual será? Uma gaveta de cada vez.

"Eu já nem sei se eu tô misturando"



Há cansaço. Há a vida que urge e se acumula em dias, em tarefas, em rotina - essa que chega, sempre chega de uma forma ou de outra para alguém dizer em tom controlador que a gente se acostuma a tudo na vida. A gente não se acostuma, mas a gente vai fazendo a vida que quer dentro do que as possibilidades permitem. Rema contra a corrente quando é preciso e deixa a maré carregar quando o balanço do mar é bom.

Caso é que o sono mesmo que chegue guarda na cabeça a lembrança de ontem que quer dizer que conquista é um processo. Que a gente ganha espaços - ou metafóricos e os territórios do corpo mesmo. Vai avançando aos poucos, alargando as fronteiras da pele e ergue uma bandeira. Pode ser uma bandeirinha pequena, uma bandeirinha do arco-íris, no pescoço. Claro, na-linha-em-que-se-encontram-o-pescoço-e-ombro-,-onde-o-cheiro-de-nenhuma-pessoa-é-igual-ao-de-outra. Isso a gente já sabe.

Sabe também que não é conquista no sentido militar do termo. Que no fim aquela bandeira não fica fincada ali. Que não é de ninguém e que também não é só uma curva de pele. Se fosse, já tinham se ido fronteiras infinitamente mais profundas. Tem gente do outro lado da lente e na metade de cá do espelho. Gente que se faz e que se mostra. Eu assisto. E caminho devagar.