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terça-feira, outubro 16, 2012

As damas da noite recolhem o seu perfume com a luz do dia



"Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada".
(Trecho do conto Dama da noite, de Caio Fernando Abreu).



Podia ter acabado num convite para uma dança do qual ninguém lembraria já que a dança sequer aconteceu. Quer dizer, aconteceu. Aconteceram várias enquanto você observava de longe o movimento que faziam os cachos dos meus cabelos. Não, não era isso. Você observava os movimentos só, sem nem saber ou se importar com quem eu era. A pista rodando e eu rodando junto com uma depois outra e outras tantas de quem também não é possível lembrar. As moças e as músicas.

Você olhava de fora, à margem, a cara cheia de quem diz, "Olha, eu não sei" e oferece um sorriso perambulando entre a doçura e a educação. A vida segue e a roda continua rodando e toda a gente junto, dentro.

Quem olhasse sua cara de fora - digo assim 'quem olhasse', porque eu mesmo não olhei, eu estava dentro, como todo mundo - diria que a sua vontade era rodar junto também, mas as pessoas nunca sabem.


É que ninguém sabe - ou todos sabem e nunca é importante saber - que a vida é a polpa de onde se tira com custo, sangue, suor e pequenos gritos o substrato para a literatura. Essa coisa inútil, impalpável, essa coisa de quem não tem nada de concreto. Eu nunca disse que tinha. E também quem sou eu para me achar li-te-rá-ria? 

A pergunta não era para ser realmente respondida. A vida não era pra ser real. Não era pra ser, entende? Chega um dia em que a gente vira personagem da própria história e aí... e aí não tem jeito que dê jeito. Não tem vida que dê fim.

Quando eu fui atrás de você, no entanto, não era no intuito de encontrar uma brechinha e aprender a tal palavrinha secreta. O que eu queria era te tirar dessa roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar. Queria só quebrar, como se diz?, o pro-to-co-lo.

Eu disse que não sabia rodar misturando feito cachaça e cerveja essas minhas referências que no fim das contas ninguém entende. Enchi o copo e te disse que viver é melhor do que entender, que criticar pode ser melhor do que propor - ou alguma coisa parecida com ou completamente diferente disso. Dissemos coisas porque era preciso dizer, era preciso quebrar o silêncio que se formava com o recolher da música e com o fim dos pretextos e com o vazio que fica na mente quando o que se quer é só apresar as coisas. E falamos essas coisas vagas, vazias, essas frases que a gente encontra para preencher o tempo entre o primeiro copo e a primeira transa. Dissemos, andamos, fomos.

Eu acordei sem saber a que horas você teria saído. Poderia até pensar que foi tudo sonho, mas isso não chegaria a ser um pensamento e sim uma lembrança. Alguns vestígios pelo chão e alguns cheiros ainda presos ao lençol que você mal desforrou me diziam que não.

E não adiantava tudo o que me diziam, não adiantava a cena, não adiantava a música, as coisas no lugar e as tais coisas todas que você disse, que a gente disse. Eram só essas frases que a gente usa para preencher os tempos e espaços que separam a cama do primeiro copo. O meu primeiro havia sido cerveja e o último cachaça. Você parecia ter bebido outras coisas e vindo de outros mundos. Mundos que deixam as portas abertas quando saem e sabem que isso não é um aviso de volta.

Esse nunca mais ficou rodando na cabeça só o tempo que durou a ressaca, como uma melodia fina que se desmancha no ar durante a manhã de segunda-feira.

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