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quarta-feira, junho 29, 2011

No dia em que Caio F. morreu

Hallina Beltrão

No dia em que Caio Fernando Abreu morreu, esqueci de colocar o despertador para acordar, sempre isso, atraso, alguma correria, um despertar sem jeito, apressado, um susto. Chão de cerâmica frio, pisei tateando o dia, o despertar seco de um fevereiro sem Carnaval. Corri para pegar o carro, ir para a faculdade, aula de Filosofia, mas antes tinha ela, a educação física, e eu pensei algo como “mente sã, corpo são”, uma certa raiva de forçarem a gente a fazer exercícios àquela hora da manhã, mas não havia tempo para questionar, um, dois, um, dois, segura o abdômem, segue fazendo, sim, você consegue, vai, vai, não fui. Talvez me animasse com uma partida de vôlei ao final, mas o corpo doía das flexões e, na hora do salto, a queda - que queda. Feriu? Feriu? Uns arranhões somente, passa merthiolate, tem mercúrio?, mercúrio cromo, band-aid, bandaid. Sangrou, mas, como tudo que arranha, sangra pouco, só arde. Assopra que passa. E mal cheguei na cantina para almoçar já tinha a casquinha da ferida se formando. Me orgulhei das defesas do meu corpo, tantos anticorpos, glóbulos vermelhos espartanos, armados até os dentes, ninguém passa, nenhuma dor, nenhuma perda. E mal acabei de almoçar, a ferida ali, toda-toda, a ferida, assim, me dizendo “me esquece”, e Tiago aparece. Eu tropeço, me segura senão eu caio, Carol me segurou, mas magoou a ferida, de leve, roçou num canto de parede, aquela camada de casca sobrou, assopra, assopra, e Fabíola assoprou, ninguém sabia, mas foi tudo culpa de Tiago, esse tropeço, esse empurrão, e chegaria o dia em que, sem muletas, eu iria encostar Tiago num canto escuro e dizer que nem Neusa Suely, “bate, mas bate legal”, com a voz rouca de Vera Fischer naquela adaptação xinfrim de Plínio Marcos feita pelo picareta do Neville D’Almeida. Aula de Filosofia mancando, mas o texto era da Marilena Chauí e, nessa época, eu pouco me importava se a Marilena Chauí era de direita, de esquerda, se era lulista, FHCista, o escambau, eu queria ouvir Bethânia dizer que eu-tenho-esse-jeito-meio-estúpido-de-sere- de-dizer-coisas-que-podem- magoar-e-ofender e ir para casa escrever algumas coisas para Tiago e dançar até amanhecer no Boato aquela música que dizia but I’m here to remind you of the mess you left when you went away, raivosa, e entrar na pista vazia do Guitarra’s ao som de Wonderwall para ver se, do nada, do nada, você aparecia e maybe you’re the one that saves me. E você sempre aparecia. Do nada. Do nada. Com ela. E tinha a coisa de me vangloriar que eu passava a noite inteira e gastava R$ 10, só na Coca, na água, para não me embriagar e perder de te ver. E foi Fabíola quem me disse “Caio morreu”, assim, seco, sem preparar terreno nem nada, o morango mofou, o dragão finalmente foi conhecer o paraíso, uma pequena – grande – epifania. Era o fim. Ou o começo. Porque a pressa do começo do dia tinha me feito esquecer. 25 de fevereiro, hoje, é o aniversário do meu pai. E Caio no Menino Deus, vezenquando gente, vezenquanto alma, indo embora, lá em casa, bolo, coxinha, strogonoff de carne, arroz branco, batata palha, meu pai, 57 anos, descobriu uma doença na coluna, era o primeiro aniversário dele sentado. Sentado hoje e para sempre. Muitas felicidades, muitos anos de vida. Sentado, deitado. Ver meu pai naquela cadeira automóvel-conversível diante da vela, diante do bolo, só me lembrava Caio Fernando jardineiro, dizendo que “girassol quando abre em flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor”. Mas girassol não se entrega. E a espada que o jardineiro coloca para segurar a flor do girassol é essa cadeira-muleta que leva meu pai, esse nascido sob o signo de Peixes, para um lugar em que a palavra que deve aparecer é “durar”. E diante daquele bolo, diante da doença que faz meu pai, a cada dia, esquecer um pouco de mim, eu lembrei que “não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu?”. Foi depois de meu pai, com algum esforço, cortar o pedaço do bolo e dar o primeiro pedaço à minha mãe, que lembrei daquela frase de Henry Miller e que, me parece, era tudo o que Caio parecia dizer ao pai dele, naquele dia, 25 de fevereiro, em que, depois de tantos suores, tantos medos, tantos agostos secos, Porto Alegre cinza, depois de ser um estranho estrangeiro e de inventariar essa coisa chamada Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, essa Síndrome do Irremediável Abandono, Síndrome da Ineficiência do Afeto, Síndrome do Inefável Acanhamento, finalmente, num sopro de vida, Caio Fernando dizia, citando Henry Miller: “Agora eu nunca estou sozinho, na pior das hipóteses estou com Deus!”.


SOBRE O AUTOR
Thiago Soares é professor da UFPB e autor da dissertação Loucura, chiclete & som: A prosa-videoclipe de Caio Fernando Abreu.


Fonte: http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=368:no-dia-em-que-caio-f-morreu&catid=23:cronica&Itemid=4

terça-feira, junho 28, 2011

Queria ter um arco-íris para pintar em cenas, metáforas e narrativas em looping por aqui hoje. Alguma coisa que falasse de orgulho, de não querer voltar sozinho para casa, de ler em voz alta um conto para alguém. Escrever ou reescrever alguma coisa grande, limpa e bem diferente do que diriam por aí ser pura. Fico devendo. Hoje deixo só a vontade, o desejo, o tesão. Esse sentimento/sensação que tem muitos nomes, precisa de muitos deles porque nenhum encerra, mas mais do que nomes tem cheiros, gostos, toque, pa-la-dar para dissolver assim devagar na língua. Podia ter um poema também, não fazia tanta questão de uma história (embora ficasse mais feliz se fosse uma em versos). Já que não é nada disso - mas já é alguma coisa quando é uma ideia, mesmo que não possamos cheirar ou tocar uma. Já que também não posso deixar um perfume nisso que não é um papel. [Eu me lembro bem do tempo em que as cartas de amor podiam ser perfumadas, eu lembro de quando existiam papéis de carta e a gente escolhia o mais bonito imaginando a cara que a pessoa faria quando abrisse o envelope - o que nos leva a crer que eu sou de um tempo muito brega]. Eu também sou do tempo que existia envelope e nem faz tanto tempo assim, mas as rupturas nos fazem querer agarrar alguma coisa do antes para lidar com a mudança. Mudanças são difíceis e como disse hoje uma amiga, nosso tempo é de muitas lutas. E do orgulho da minha luta, deixo um trechinho só para vocês que também lutam, que também têm orgulho de:

"Eu também não sei direito, às vezes eu, Patrícia, você sabe. Mas é estranho não saber. Acho que ninguém sabe. Deve ser mais confortável fingir que sim ou que não, você delimita. Mas acho que aqueles que acham que são compreendem melhor essas coisas" (Onde andará Dulce Veiga, romance de Caio Fernando Abreu)[itálico no original].

domingo, junho 26, 2011

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rodando por aí feito roda-gigante e eu aqui, parada, pateta, sentada no bar.

terça-feira, junho 21, 2011

Je suis Venu te Dire Que Je m'en Vais

Je suis venu te dir'que je m'en vais
Et tes larmes n'y pourront rien changer
Comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
Je suis venu te dir'que je m'en vais
Tu t'souviens des jours anciens et tu pleures
Tu suffoques, tu blémis à présent qu'a sonné l'heure
Des adieux à jamais
Oui je suis au regret
D'te dir'que je m'en vais
Car tu m'en as trop fait
je suis venu te dir'que je m'en vais
Tes sanglots longs n'y pourront rien changer
Comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
Je suis venu d'te dir'que je m'en vais
Tu t'souviens des jours heureux et tu pleures
Tu sanglotes, tu gémis à présent qu'a sonné l'heure
Des adieux à jamais
Oui je suis au regret
D'te dir'que je m'en vais
Car tu m'en as trop fait
je suis venu te dir'que je m'en vais
Et tes larmes n'y pourront rien changer
Comm'dit si bien Verlaine "au vent mauvais"
Je suis venu d'te dir'que je m'en vais
Tu t'souviens des jours anciens et tu pleures
Tu suffoques, tu blémis à présent qu'a sonné l'heure
Des adieux à jamais
Oui je suis au regret
D'te dir'que je m'en vais
Car tu m'en as trop fait

sexta-feira, junho 17, 2011

‎Fechar as portas,
bater as portas,
trancar as portas.
Tragam-me chaves,
correntes, cadeados.
Dêem-me o claustro
que não suporto o outro. Ponham-me grades,
que não agüento o vivo!
(...)
O vômito.
Além do vômito,
a lágrima.
(...)
Além da lágrima, a prece,
Meu Deus.
Ou o cinismo.
(...)
Socorram-me
que me afogo em meu próprio sangue,
em minha própria mancha!


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Trecho da peça O homem e a Mancha, de Caio Fernando Abreu. [distribuição em versos minha]
Pouca disposição para as coisas pragmáticas. Mergulhada num êxtase estranho e completamente fictício. Ficção é bom. Mas fica faltando uma questão de honestidade básica, questão de não admitir os limites. O problema não está no que se quer comer, o problema está sempre na fome. Essa fome de vida que não cessa e não adianta tentar que não se traduz em palavras, não tem como simplificar, não tem como virar a cabeça para o outro lado ou lidar de outro jeito. A vida é agora, aprende.

O diabo dessa vida não é que entre cem caminhos diferentes nós temos de escolher um e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove. O diabo dessa vida é que há coisas sobre nós mesmos que a gente não escolhe. Há-que admitir que nem sempre a escolha é possível. Só podemos controlar a maneira como lidaremos com esse imutável. O desejo é inexorável. O não-desejo também. Há-que ter coragem para enfiar a unha na garganta. Angústia maior do que a de estar encruzilhado numa esquina sem rumo é admitir que não há rumo. Há uma questão de ser o que se é, pois abdicar da vida ainda não é opção. "Tem umas coisas que a gente vai deixando de ser, vai deixando de ser e nem percebe".

terça-feira, junho 07, 2011

Renovei os votos com a vida e combinamos que daqui para frente será assim: diariamente. Com direito a declarações toscas como sem-você-eu-não-vivo ou como-eu-pude-passar-tanto-tempo. Descobri que é hoje e pretendo descobrir diariamente. Então vamos?

domingo, junho 05, 2011

"De ontem em diante serei o que sou no instante agora
Onde ontem, hoje e amanhã são a mesma coisa
Sem a idéia ilusória de que o dia, a noite e a madrugada
são coisas distintas
Separadas pelo canto de um galo velho
Eu apóstolo contigo que não sabes do evangelho
Do versículo e da profecia
Quem surgiu primeiro? o antes, o outrora, a noite ou o dia?
Minha vida inteira é meu dia inteiro
Meus dilúvios imaginários ainda faço no chuveiro!
Minha mochila de lanches?
É minha marmita requentada em banho Maria!
Minha mamadeira de leite em pó
É cerveja gelada na padaria
Meu banho no tanque?
É lavar carro com mangueira
E se antes, um pedaço de maçã
Hoje quero a fruta inteira
E da fruta tiro a polpa... da puta tiro a roupa
Da luta não me retiro
Me atiro do alto e que me atirem no peito
Da luta não me retiro...
Todo dia de manhã é nostalgia das besteiras que fizemos ontem"

quinta-feira, junho 02, 2011

O tempo ainda nem passou e já se vão muitos anos percorridos numa temporalidade entrecortada. Ciclos, loopings de nostalgia de passado ou futuro - a vida aqui urgindo, rugindo, rangendo. As unhas que eu não rôo se desfazendo em falta de cuidado com o presente que passa. O mundo não pára para que eu conserte os pequenos cacos, o carpe diem não cabe nas necessidades de brigar pela sobrevivência todos os dias.

São muitos prazos e pânicos que me corroem, me batem, esfolam a pele de um jeito estranho e eu penso dividida no passado com ares de missão cumprida, toda Bem Resolvida & Madura esperando os sinais que vão aparecer aos poucos na pele e que já sempre estão aqui dentro: sinais de que o tempo não é algo que possa voltar atrás, a vida não se passa em mundos imaginários. Dito assim da maneira mais infantil, abismal e desesperadora.

É claro que eu já sabia. Eu sempre sei. Mas o saber não garante muita coisa.

Vai sim, vai ser sempre assim
A sua falta vai me incomodar,
E quando eu não agüentar mais
Vou chorar baixinho, pra ninguém ouvir.
Vai sim, vai ser sempre assim,
Um pra cada lado, como você quis
E eu vou me acostumar,
Quem sabe até gostar de mim.
Mesmo que eu tenha que mudar
Móveis e lembranças do lugar,
O meu olhar ainda vê o seu
Me devorando bem devagar.
Vem, que eu ainda quero, vem.
Quando menos espero a saudade vem
E me dá essa vontade, vem
Que eu ainda sinto frio
Sem você é tudo tão vazio
Vem me dar essa vontade,
Vem que esse amor ainda é meu.
Troco todos os meus planos por um beijo seu
E essa noite pode terminar bem.