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quarta-feira, agosto 29, 2012

29 de agosto: Dia da Visibilidade Lésbica

O dia quase no fim, cheio de problemas, preocupações, coisas martelando na cabeça e a internet (que sempre me avisa das coisas) me diz que hoje é dia da visibilidade lésbica. E eu me sentindo tão invisível - e até bastante hétero nos últimos tempos... É claro que este tem sido apenas um comentário com amigos que explicita o fato de que eu tenho me relacionado muito mais com homens nos últimos tempos, mas quem sou eu para julgar e condenar a minha própria sexualidade se eu procuro tanto não fazer isso com a de mais ninguém?

Eu costumo dizer, costumo mais do que dizer, costumo levantar a bandeira (e olha que essa é uma das poucas bandeiras busco levantar com todas as minhas forças) de que sexualidade é uma coisa muito mais ampla do que querem nossas classificações. Como já disse Caio Fernando Abreu, em frase que eu também repito constantemente, "homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade — voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe"*. Então, fica a pergunta: por que um dia da Visibilidade Lésbica? Por que um dia do Orgulho Gay?

Enxergo os caminhos das respostas para essas questões na própria nomenclatura das datas - e hoje, por razões óbvias, opto por dar destaque à questão da (in)visibilidade. A conversa pode começar naqueles clichés de que lésbicas são aquelas mulheres que ainda não encontraram um homem capaz de comê-las direito, mas eu prefiro enveredar por um caminho diferente. Não faz muito tempo, ouvi de um amigo que é muito mais fácil para uma lésbica "sair do armário", que a sociedade tem menos preconceito, que a aceitação é muito mais fácil.

Imagino que por trás dessa formulação esteja um pensamento do tipo "Ué, mas tem um monte de filme pornô com lésbicas, existe uma cultura erótica do sexo entre mulheres". Sim, existe. E nos leva àquele outro cliché de que o sexo entre mulheres existe para o deleite masculino - construção baseada naquela velha e tão presente lógica machista segundo a qual as mulheres, afinal, só existem para o deleite masculino, são inclusive uma mera parte dos homens ou vocês esqueceram da historinha da costela do Adão? Não, eu não esqueci. E não esqueci porque nunca me deixaram esquecer. Porque ser lésbica e lutar pela visibilidade não é necessariamente lutar para sair nas ruas e não ser fisicamente agredida. Ser lésbica e lutar pela visibilidade é ouvir gracejos, "elogios", gente "querendo participar", é enxergar nos olhares alheios aquela agressão da cultura do estupro - e, ouso dizer, com a ameaça do estupro mais exacerbada pelo argumento de que as lésbicas precisam disso para corrigirem a sua sexualidade.

Como disse no começo do texto, após três anos casada com uma mulher, nos últimos tempos tenho me relacionado com homens e me peguei em alguns momentos constatando como a gente acaba criando mecanismos de defesa para a homofobia. Um gesto bastante corriqueiro e inconsciente para um casal heterossexual como andar de mãos dadas nas ruas foi o que me surpreendeu um dia desses. O que era para ser um gesto de carinho, ter as minhas mãos entre as de outra pessoa, depois de um certo tempo, depois dos percalços e inseguranças de uma separação, depois da alma machucada por muitas coisas, o que era para ser um gesto de carinho me sobressaltou. Tentei disfarçar o susto e me vi automaticamente observando minuciosamente o local em que estávamos, como costumava fazer a fim de precaver a mim e a minha companheira de possíveis demonstrações de homofobia. A gente se acostuma com o preconceito? A gente acostuma a sentir medo... Esse medo invisível para muita gente, esse medo intangível para os que abrem a boca para dizer que direitos para minorias servem para construir privilégios.

Me surpreender nesse "momento heterossexual" me fez sentir exatamente assim, uma pessoa privilegiada. Uma pessoa que vive em circunstâncias mais confortáveis do que uma quantidade enorme de pessoas e essa sensação não foi nada legal, porque se eu estivesse com uma mulher ao meu lado, talvez nós não déssemos as mãos, talvez ficasse entre as duas a áurea de medo que nesse caso passou só por mim. E é isso o que acontece muitas vezes e o que eu não canso de ver (graças a deus e com muito orgulho, quero ver muito mais!) é gente vencendo esse medo, unindo as mãos, os lábios e mostrando que uma demonstração de afeto é uma demonstração de afeto independente de qualquer coisa. O que eu queria ver mais é que as outras pessoas entendam que essa demonstração de afeto não altera em nada a vida heterossexual delas e que não há motivo para responder a isso com xingamentos, comentários estúpidos, agressões, assassinatos e outras formas de violência.





* Trecho da crônica A mais justa das saias publicada no jornal O Estado de São Paulo em 23 de julho de 1987 e presente no livro Pequenas Epifanias (2007).

terça-feira, agosto 28, 2012

Sinal

Para ler ao som de Alazão (Filipe Catto).


Uma questão de colocar o ponto final. Alinhavar com força e precisão o que falta. Tirar do lugar o que juntou poeira por tanto e tanto tempo e que nunca teria se resolvido com o afago de uma flanela umedecida. Linha e agulha em mãos e o medo de furar o dedo guardadinho no peito palpitante que há pouco sangrava. Ele eu também costurei. Fica essa carne vedada e ainda com cheiro de ferida aberta. Dá pra sentir o cheiro de carne fresca no ar, a vermelhidão da pele exibe o quanto ainda é sensível ao toque - despertando uma vontade enorme de encostar com a delicadeza mais firme a ponta dos dedos quentes, de mergulhar nessa dor que na verdade é sen-si-bi-li-da-de.

É que me puxaram a máscara com brutalidade, à guisa de construção narrativa, diria que de-forma-abrupta-e-inesperada. Redundante e falso, como as frases feitas usadas para cumprir o script mais cliché entre os que imaginei que seria o nosso fim. Mas passou, passaram as minhas cenas de drama mexicano e as suas falas de revista de auto-ajuda, passou mais rápido do que pareceria o tempo de rosto lívido depois da máscara que você arrancou e foi junto uma camada inteira de pele. Ficou a descoberta de que existe outra camada de pele debaixo da pele e que quando a gente arranca a primeira, fica aquela segunda que é mais fininha e sente tudo muito mais intenso, muito mais real. O frio e o calor alternam em suores, febres, tremores. É vida o que se desenha na nova volta de círculos descentrados.

A palavra despedida tem rostos de anjos, os cenários que farão falta (e ainda assim estarão perto) têm outros personagens, roteiros mais contundentes e têm aquilo... aquilo que faltava e eu não via, eu tinha esquecido o que era, coisa simples, pequena e tão desejada: ficam espalhadas pelas ruas santas gotas de poesia que derrama de copos, corpos, vozes, sorrisos e palavras.

sexta-feira, agosto 24, 2012

Laço de fita

Abro pontas que talvez alguém ate. Talvez alguém faça laços, leques. Espalho migalhas que talvez alguém recolha e siga como um conto infantil sem saber que são tirinhas de no máximo quatro quadros. Desenho em nanquim os contornos do cenário, pequenos quadros, curta sequência - assim do jeito ideal para caber nos meus sonhos e na minha capacidade de elaboração literária, que todos sabem que é do tamanho do meu estômago. Faço os limites dos quadros, restrições torpes baseadas em metas rasas, e depois chamo carinhosa e forçosamente de mol-du-ra. Há quem compre a ideia, elogie o trabalho do marceneiro e há os mais prosaicos que, como deve ser, nem reparam nesses detalhes desinteressantes que rodeiam as obras de arte. Vou colocando as minhas próprias dentro. Passando os dedos de olhos fechados para melhor sentir a textura, chegando o rosto bem perto para procurar ainda um cheiro das cores - sabendo que é isso o que importa. Tirando o limo para escorregar mais fácil, mais rápido no caminho desembestado que sempre leva ao chão.

Chão que eu decoro com pedrinhas, que eu povoo com sonhos, livros e poucas coisas cuja graça consiste em escolher junto com meus botões onde cada coisa fica. Por fim, ato sozinha as pontas, faço laços, origamis e junto minhas próprias migalhas com as pontas dos dedos - que bem conhecem os caminhos da boca.

quarta-feira, agosto 22, 2012

As asas batem devagar quando se aprende a voar

Para ler ao som de Entregue-se  (Tiê).

Aos muitos anjos.

Um dia de cada vez e tudo se ajeita. Vez em quando, posto que ninguém é assim tão auto-suficiente, há que recorrer a frases feitas, motores de fôlego e mantras que deem razões para abrir os olhos a cada manhã - e a fechá-los a cada noite sabendo que sim, é possível. Aos poucos, os dias se redesenham e eu descubro que há muitos anjos no caminho. Descubro que eles se escondem nos lugares mais improváveis, em caixas de papelão, pares de meia, pedaço de papel ou mesmo em um isqueiro. Escondem-se nos meios das páginas de alguns livros, no fundo de alguns pratos e copos, nas mesas, eles se escondem. Alguns relampeiam coisas bonitas, dessas que a gente só diz depois de muito uísque, e logo logo tornam a desaparecer. Outros vêm justo para encher de novo o copo, acender poeticamente o cigarro e representar cenas mal feitas de filmes nunca feitos, quadros nunca pintados, livros... ah, estes ficam sempre suspensos para o dia em que serão escritos. Há os mais inusitados - e também os mais intuitivos - que surgem justo para montar a trilha sonora dessas coisas todas nunca feitas nem vistas. E deixam a imaginação correr solta sem saber que se tornam a paisagem, o quadro, a companhia das melodias que deixam antes de ir.

Os anjos aparecem para me dizer que não adianta colocar prefixo de negação se eu nunca tive dono. Dizem essas coisas assim grandiloquentes ou não dizem nada, apenas estendem a mão, matam o frio dos meus pés quando estou dormindo, falam de sabores quando estou comendo, brindam aos bons fluidos quando estou bebendo. Anjos podem aparecer de manhã no ônibus para anunciar um dia ensolarado, aparecem distraídos e dizem de um jeito suave que o fardo pode ser mais leve, fazendo com que eu nem precise estender um pedaço.

Eles mandam dicas de filmes, se oferecem para planejar futuros, ajudam a escolher as cores das coisas, dão pitacos nos detalhes que ainda estão na minha imaginação, minoram o desespero dessa não realidade e dizem onde encontrar a tinta quando tudo for real. Anjos passam e apenas dão um beijo de boa noite, oferecem um chá ou um pano de chão. Às vezes, ninguém sabe, colocam tudo a perder, mas depois, ajudam a trancar portas sorrateiramente, resolvem problemas com mais uma traquinagem infantil para alimentarem os estereótipos. Há uma espécie deles que não tem asas nem penas brancas, um tipo peludinho e doce, que conversa do seu jeito e dá o seu jeito de dizer que existem os amores eternos.

Anjos ajudam a criar histórias, empinam as orelhas para saciar minha vontade de declamar. Anjos me tratam como a criança mimada de sempre e me dizem verdades dolorosas que só se diz a um adulto quando é preciso dizer. Anjos estendem as mãos e arregaçam as asas esperando o voo em que eu possa levá-los todos. Podem vir!

sexta-feira, agosto 17, 2012

Damas grátis: pra quem?

Dia desses, conversava com uma amiga sobre a mercantilização do corpo feminino que está por trás das programações noturnas que não cobram entrada para as mulheres. Como assim?, você deve estar se perguntando. Que mal há em deixar as mulheres entrarem de graça nas boates - e às vezes ganharem bebida liberada também? Fiquei com isso na cabeça durante alguns dias, pensando que muitas mulheres não atentam para esse tipo de violência e acham super legal entrar de graça nos lugares. Ouso dizer que muitas amigas minhas gostam e escolhem seus momentos de lazer enfatizando esse tipo de lugar para economizar dinheiro. O desconforto ficou martelando até o dia em que recebi um convite de aniversário cuja programação traz no flyer não só a entrada VIP (?) das mulheres, mas também o tal do Open Bar.


Não vejo problema nenhum em não pagar entrada, aliás, acho caro e sem sentido gastar uma fortuna para ficar num lugar escuro, abafado e com música alta. Mas não é sobre o meu espírito velho que quero falar. O probleminha invisível no 'damas grátis' é que normalmente a mesma filipeta sinaliza um valor bastante alto para a entrada dos homens, como é o caso desta que recebi.

Eu passo para vocês a mesma pergunta que minha amiga fez: por que os homens pagam valores (às vezes bem exorbitantes) para entrar numa casa noturna em que as mulheres entraram de graça algumas horas antes e estão ganhando drinks? Eles não estão pagando pela entrada, eles estão comprando um produto - foi a resposta que ela me deu e com a qual concordo plenamente. Eles estão pagando caro justamente pelas mulheres que entraram antes e já estarão bêbadas e fáceis na hora em que eles chegarem. E aí, se eles estão comprando esse produto, nada mais legítimo que ele o receba. Lógica capitalista. E nessa lógica assustadora, o cara ganha o direito de reclamar em caso de valor pago e produto não recebido.

Sei que não sou a melhor pessoa para relatar experiências nesses lugares, mas nas poucas vezes em que fui, me recordo das abordagens super agressivas, mãos no cabelo (imagino que isto seja até sorte), homens puxando pelo braço etc. Até onde me lembro, aliás, é por isso que não frequento esses lugares. O que não percebemos é que essa modalidade de violência - entre tantas outras sofridas pelas mulheres todos os dias - não está partindo apenas de meia dúzia de caras babacas. Essa violência é estimulada, alimentada, acalentada pelas casas noturnas. De vez em quando a gente vê consequências mais complicadas, uma agressão mais explícita como o caso da mulher que teve o braço quebrado ao recusar um homem numa boate em Natal. O que não vemos é que toda a lógica de funcionamento dessas casas noturnas, do ingresso às músicas tocadas, tratam as mulheres como objetos do desejo masculino - e se há alguma agência atribuída a elas, é a de satisfazer esses desejos, tornando legítimas as reações com violência física caso isto não ocorra. O que está sendo vendido não é um espaço com música e diversão, é um abatedouro em que, desculpem, eu não quero ser mais um pedaço de carne.

Mais um brinde

Mais uma dose? 
É claro que eu tô a fim
A noite nunca tem fim
Por que quê a gente é assim?
(Cazuza)

A vida oferece.
Um sorriso,
um pedaço de bolo,
um livro,
um abraço.

A vida vai oferecendo
coisinhas pequenas-grandes,
jeitos minúsculos de lidar
com o lobo-mau e a tal medonha.
A escolha consiste em aceitar ou recusar.

Transformar o brinde em porre,
sorver em pequenos goles.
Fazer de um jeito que não seja impune,
não seja ameno.

Fazer alguma coisa
que aqueça a água
antes que seja tarde.

A gente só sente o gosto se colocar na boca.

quarta-feira, agosto 15, 2012

Para se ler ao som de Mapas do Acaso (Engenheiros do Hawaii).

A mão finalmente alcança o disco e põe na vitrola com a convicção de já ter tocado outras coisas. O riso que se fecha para tragar mistura vaidade e a sensação boba que só as felicidades simples trazem. As defesas vão sendo minadas a cada pequeno gesto, cada palavra doce no meio da tempestade. Depois de ter perdido o chão e o teto, a gente não espera muita coisa da vida, acha que dá pra viver na tristeza de um poema. Um poema-guarda-chuva, que alguém abre e eu me deixo envolver por qualquer pequena proteção.

Liberdade é quando diante do mar aberto a gente se agarra a uma única gota. Se agarra com toda força que tem, sabendo que não tem quase nenhuma, não tem quase nada além desse medo enorme de que doa ainda mais. Era para mergulhar nas coisas todas, nas cores todas, mas aí uma gota faz perder o caminho, uma gota dá conforto, paz, uma gota faz com que esse vazio de estar vivo seja esquecido por algumas horas, que esse sangue que escorre das feridas inflamadas estanque por alguns minutos. Gota pequena que deixa no ar alguma ilusão de não estar tão sozinha no mundo - mesmo sabendo que é só ilusão, fica essa vontade de mais. Sorvendo na boca uma única gota e pensando em porres homéricos e mergulhos intensos.


terça-feira, agosto 14, 2012

Resíduo


Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

domingo, agosto 05, 2012

Fragmentos entrecortados na pauta do dia



O desafio é sempre sair do canto espectante, saber que as mãos servem para mais que aplausos, que o corpo não tem lugar marcado em assentos desconfortáveis. Mas hoje não é de mim, tenho que aceitar e entender (e se de fato o fizesse, abria mão por um dia que fosse da tentativa, da eterna tentativa). Se não há desespero, não há ânsia nem náusea. Há essa cara boba de quem não entende nada e não quer entender, não quer tampouco dar a torcer o braço de argila moldável.

O domingo frio me dá uma vontade enorme de mim. Uma paixão que vai virando mais que amor próprio, uma constatação de não querer outro corpo que não seja o meu, de não querer percorrer outras linhas que não sejam as do meu corpo, dos meus livros estrategicamente organizados na cabeceira. Não sei se tranquilidade é sinônimo de indiferença, não sei se autoconhecimento é sinônimo de ostracismo, sei que tenho ao meu redor as minhas paredes e sempre me pego demasiadamente apegada aos pronomes possessivos só para desmoronar meus próprios discursos libertários. Elas me protegem e não perguntam. Elas vão formando uma espécie de ninho quente, um regozijo para o agosto que espera - eu encaro desafiadora as nuvens carregadas no meu horizonte estreito e digo "Venha!".

Eu espero pouco e opto sempre por me respeitar. Uma página por dia, como quem começa um novo livro para ter com quem conviver. A vida não é feita de contos, mandam dizer em bilhetes escritos em guardanapos. Não é para essas pessoas que escrevo, respondo sabendo que não percebem meus plágios. Eu costuro. Uma frase na parede, uma música no rádio, uma paisagem. As coisas mais pequenas são as que fazem algo e nem importa que o conto acabe se desdobrando em crônica mal ajambrada.