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terça-feira, dezembro 03, 2013

Exposição

Para ler ao som de Pra você dizer o nome (5 a seco).


Metade de mim é palavra.

Digo isso sem qualquer dimensão de medidas.
Como quem reparte um pedaço de comida
com desproporção inconsciente.
Minha metade-palavra
às vezes se cala.
Ou finge
e se escreve de outras formas.

Palavra-imagem,
palavra-comida,
palavra-sentimento,
palavra-masturbação,
palavra-gozo.

Mesmo quando eu digo
em vez de escrever
(e olha que eu venho aprendendo a dizer,
a olhar nos olhos e nomear sentimentos),
é sempre palavra.

Tenho aprendido que palavra tem gosto, cor, corpo, textura.
Palavra tem som, cadência, ritmo.
Palavra tem até maquiagem
e se entrava no alto das pernas.

Mas tem hora
que mesmo a palavra mais ensaiada
(da repetição e da saia)
não pode ser dita. 

Fica pairando na garganta
sem engolir de volta
por falta de lubrificante
ou simples medo de que machuque.

Fica boiando no copo
e desmantela sem derreter,

como esses gelos artificiais de hoje em dia.

quarta-feira, julho 17, 2013

Digestesia

Para Taynara Barcelos e Thiago Ortiz (Tropicália)

Lambo,
devoro,
mastigo
o mundo,
as carnes,
os gostos,
os cheiros

que me passam pela garganta
pouco depois.

Às vezes engasgo,
cuspo,
vomito.

Noutras passa direto.

As enzimas e sucos
me seguram no estômago
as rimas que engulo.
De um jeito ou de outro
sempre viram texto,
embora nunca repita as texturas
do que me tece as fibras,
as vísceras, as veias
e o sangue que corre
do sexo à boca
em segundos.

terça-feira, julho 16, 2013

Inesperado

Despercebido e inesperado, ele chega. Precisaria de outro nome para descrever, porque nunca é igual e até o novo nome ele traz. Não poderia não amar o que já é sinônimo de amor. Ah, poderia... É claro que poderia porque assim é que é a liberdade, mas ao mesmo tempo não é uma escolha. Ao menos não consciente. O corpo escolheu e eu o culpo com os dois mil anos de cristianismo negado que também me fazem separar de mim a carne e a pele com as quais convivo.

Não há separação, classificação. Há o amor. Que quando dito não diferencia o verbo que prova que existe da exclamação surpresa por sua existência. Amor de pica, amor de corpo, amor de gozo, de trilha sonora, de palavra. Amor simplesmente. Amor de copos de cerveja, de histórias repetidas. Amor sem pretexto. Amor que ousa assumir as vontades. Amor birrento, mimado e infantil. Amor-fruta-mordida-e-tranquilidade. Amor que se acha definido em poesias e canções, e que ao mesmo tempo se sabe indefinível. Amor que deixa o verão pra mais tarde. Amor que acaba antes das onze, que morre de saudade, mas que sabe esperar o dia seguinte. Amor que respeita quando não é dia. Amor que investiga milímetros de corpo mais do que detalhes da rotina. Amor que vive e não pede desculpas por amar. Amor que acorda e se esconde no cheiro do pescoço. Aliás, deve ser esse o único detalhe repetido. Não importa quanto o amor mude, ele sempre se esconde na curva do pescoço com ombro, ali onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao de outra. Amor que testa essa teoria.

terça-feira, julho 02, 2013

Embriagai-vos de poesia!

Então,
Vamos encher a cara de poesia?

Poesia-licor,
poesia-cerveja,
poesia-uísque,
poesia-cachaça.
Vamos encher a vida
dessa poesia
que diariamente
nos embriaga!

Desce mais uma, garçom,
mas não conte as garrafas.
Que hoje o meu porre
vai até madrugada.

Eu quero beber poemas,
entornar palavras,
vomitar delírios,
brindar desgraças.

Pois a realidade é que costuma
deixar-me uma puta ressaca.

29/09/2008

Cela


Eu já quase te quis pra ficar,
mas aí você foi
e quem ficou fui eu.
No canto da cela,
você da cadeia
e eu de cavalo
que eu galopo
com a mesma vulgaridade
e a cara cheia de sempre.

Uma coisa é assumir a fome,

outra é a coragem para matá-la.

sexta-feira, junho 14, 2013

Incontrolado

O coração fica aflito
quando se fala em afeto
Me afeta
Me joga em anagramas,
rimas e trocadilhos
como se fosse certo.

O coração fica afobado,
afoito, inquieto
e sobretudo clichê.
A ponto de ficar assim
usando a palavra coração
des-te-mi-da-men-te.

O que agora afaga
Logo mais afoga
Hoje gozo,
amanhã lágrima,
Eu já tenho prova.

segunda-feira, junho 03, 2013

Vontade

Para ler ao som de Daniel na cova dos leões (Legião Urbana)

Vinte e quatro anos e Adélia Prado na cabeça: "Não quero faca nem queijo, quero a fome". Não saberia usar a faca se me dessem, me enjoaria o queijo por ele apenas. Tenho só a fome. A fome em muitas versões. Umas machucam os outros, outras me fazem sangrar e eu nem sei se isso é ruim.
Vinte e quatro anos e alguma predileção pela dor, apesar de conhecer bem o conforto da alegria.
Vinte-quatro anos e tanto amor à volta que seria um disparate citar o Cazuza por pura falta de rótulo de relacionamentos.
Vinte e quatro anos e muita vontade de amar. Pura e simplesmente. Tudo e todos. Como uma criança que descobre o mundo de cores, sons e cheiros.

Vinte e quatro anos e a mesma mania de repetir as coisas.
As mesmas músicas no rádio, a adolescência tardia e a Legião me dizendo que continuo nas correntezas sem direção.
Inabilidade para lidar com as coisas cotidianas, coordenação motora quasinula, menos certezas, mas com uma que às vezes angustia: só se mudar de mundo é que um dia vou me sentir em casa nele.

Vinte e quatro anos e agora sei que a angústia de estar vivo não é inconformidade adolescente.
Vinte e quatro anos e alguns amores, algumas histórias, alguns contos, muitos dramas.
Vinte-quatro anos e alguns alunxs que me fazem pensar que existir vale a pena, mesmo que não se destine a nada.
Vinte e quatro anos e uma alegria que cerca, povoa, preenche de afeto e carinho. Vinte e quatro anos e o mais improvável de admitir: eu gosto de gente.

terça-feira, maio 21, 2013

Castração

Para ler ao som de O doce e o amargo (Secos & Molhados).

O processo de descastração foi longo. Teve que matar os pais, comendo-os antes. Viveu o luto. Pôs roupa preta, depois a branca de quem reconcilia e busca paz. Podia ser só o luto de alguma cultura oriental que citava com propriedade forjada quando disparava a falar bobagens filosóficas e fundamentalistas nas praças públicas. Vomitou alguns clássicos da literatura, expeliu em diarreia boa parte da teorização sobre a humanidade enquanto sentia crescerem os pelos de seu corpo, as pontas dos caninos e os bigodes tão sensoriais.

O mundo se mede por onde é possível colocar a cabeça, pensava lambendo as próprias genitálias.

Foi necessário emagrecer toda a gordura que sobrava, pois vocês sabem que castração engorda porque não é possível fugir da fome, só transformá-la. Transformou tanto que não não podia simplesmente trocar uma coisa pela outra, elaborar um algo novo. Agora a fome a engolia ampla e a carne dos quadris guardava ao mesmo tempo o apetite do ventre, da boca e da alma, de modo que quando devorava, só sabia fazer inteira. Como um poema do Pessoa, mesmo que não soubesse de qual dos eles. Gozava com o corpo, trinchava a carne e sentia o regozijo da sua alma saciada. Acostumou a chamar de alma essa junção de estômago e vulva. Justo as partes menos humanas e, portanto, pouco passíveis de salvação.

Fato é que desfez e recosturou as trompas que o veterinário lhe arrancara sem dó e com meio comprimido de analgésico humano. Recobrou o vigor e a líbido. A razão não importava. Não era possível nem necessária.

segunda-feira, maio 20, 2013

Prazer

Ela mergulhou no balde de cloro porque queria ver o efeito nocivo que aquilo teria. Queria observar enquanto as roupas manchavam e a pele ressecava sob o líquido nocivo. Ela mergulhou no balde de cloro porque leu a obra completa de Clarice Lispector antes dos dezoito anos e desde então vivia aquela ânsia esquisita de vida. Sofria os sentires por ter escolhido errado na prateleira. Tinham oferecido Rubem Fonseca, Fernando Sabino, Machado e outros tantos e tantos, mas desde o primeiro instante lhe atraíra aquela mulher que devorava baratas, aquele assassino que segurava maçãs, aquela criança que depenava galinhas.

A paixão já era antiga, se é que pode existir paixão que dure, e agora experimentava ápices. Precisava de mergulhos mais fundos, golpes mais dolorosos, precisava desesperadamente sentir algo mais concreto que a libertasse de todo aquele sofrimento metafísico.

Nunca mais história, nunca mais personagem. Uma ou outra citação perdida das canções de Chico Buarque, a prisão da eterna cicatriz de Elis brilhava na pele. Já vivera lutos, mas não sabia viver coisas. Inventava o quanto podia. Como se ainda fosse a mesma criança que arriscava aventuras entre as prateleiras. Sempre e nunca era só sentimento. As palavras grandes a acompanhavam, as dores fundas eram velhas companheiras. Mas a vida, essa que dizem real, palpável, constante. Essa não chegava nunca e era só um sofrimento a mais a espera.

Podia ter tacado fogo nos livros. A opção foi bastante estudada. Contudo, percebeu logo que os trechos decorados ecoariam em sua cabeça até o fim dos dias, atrelados à insegurança de estarem ou não milimetricamente corretos. Só mais um gole do desespero que sabia inútil, sem falar na inabilidade para lidar com esse elemento tão desconhecido (apesar de atraente).

A solução foi mesmo aquele balde. A companheira de quarto tinha feito as compras para a faxina da semana seguinte. A garrafa apetitosa de cloro brilhava no seu verde feio. Cogitou beber, mas não era o simples envenenamento que queria. Ela queria a vida que só arde na pele, que desmancha imagens, mancha roupas e desfaz certezas. Despejou-a inteira de uma vez. Divertiu-se durante os breves instantes em que o líquido se libertou, trocando o verde-feio pelo vermelho-vivo-cliché do balde.

O primeiro pé divertiu-se com a temperatura baixa. O segundo sacolejou de um jeito que o cheiro de seu conteúdo acordou e se espalhou pelo ar. Os cabelos foram mudando de textura conforme a cabeça afundava. Era bom, pensava repetidas vezes enquanto se sentia incapaz de prender a respiração e sentia aos poucos que seu pulmão se enchia. Era bom.

segunda-feira, maio 13, 2013

Na galeria

A sua vida dura quinze minutos da minha narrativa.

Parece pouco, mas esse tempo eu tiro das minhas raras horas de sono. Por isso é preciso contar junto o tempo da escrita. Estetização. Paradoxação. Neologização. Invenção rimada, ritmada e bruta.

Meus olhos distraem-se e vão fechando sozinhos enquanto te observo. Vejo-te imóvel e pego esses pequenos detalhes que deixas escorrer pelos cantos. Monto. Cato a poesia que entornas no chão. Meus olhos embaçam e já não vejo vida nenhuma. És borrão que eu verto em palavras na falta de habilidade outra - não que essa, enfim.

Dedico meu tempo de vida a fazer-te meu personagem. Não sobra nenhum dos lados. Não durmo nem narro, nem vivo, nem crio, nem como, nem faço. Pego meu molde de plástico e me divirto com o tanto que você não se deixa derreter para que o faça. Vejo no canto do seu rosto o sorriso irônico de quem percebe que no fundo as pessoas são reais e se misturam. Não é o caso de reduzir a pronomes pessoais retos, indiretos, esquerdos ou de obviedades toscas ainda mais conhecidas.

Eu leio. E disto, por hora, me alimento. Aguardo o momento de despir, cuspir palavras, salivas, trocadilhos. Por hora sinto espumar na garganta, escapar pelo canto da boca, escorrer devagar. Sinto com os olhos já fechados a baba que me escorre pelos lábios.

domingo, abril 14, 2013

Um jogo

Ao som de Me liga (Paralamas do Sucesso)

Você me atira uma bolinha verde.
Eu a escondo em revanche
e penso que poderia ser azul
por pura falta do que pensar.

Você cola a bolinha na vitrine
Eu ponho na testa pra ver se gruda
Você coloca trilha sonora
e arremessa de volta.

Eu guardo.
Você guarda.
Poderia ser um jogo.
Poderia ser um conto.
Mas são só imagens.



A compra

Porque o verão começaria em poucos dias; porque a esposa faria uma longa viagem a trabalho; porque com o fim do semestre os dias ficariam folgados; porque desaprendera a divertir-se sozinho; porque a luz que entrava pela janela no final da tarde deixava tudo mole, deprimente, vazio. Por essas razões todas e por nenhuma delas em especial, naquele dia ensolarado de dezembro, decidira comprar um gato. Uma gata, para ser mais preciso. Que não estava disposto a disputar com ninguém o papel de macho dominante da casa.

Não sabia direito como funcionava isso. Cansara de ver contatos compartilhando imagens de animais abandonados nas redes sociais. Cogitou adotar um dos maltrapilhos com semblante amoroso, mas isso o desviaria do objetivo. Seu desejo era comprar uma felina.

Numa dessas  lojas especializadas de shopping, conseguiu a mais felpuda. Uma filhotinha da raça angorá que se divertia com qualquer pedaço de papel que caísse no chão, como faria qualquer gato vira-lata, mas ele não soube por falta de experiência.

Assim funcionava: a cada fim de tarde, quando o sol entrava ameaçador pela janela, enforcando a sala com aquela beleza ímpar, lotando o cômodo bem decorado de solidão, ele esfregava de leve os pés no dorso da gatinha e sentia em retribuição aquele ronronar gratuito de quem também sofre de falta de amor.

Como quem inventa um hobby pra ocupar o tempo, como quem contrata uma garota de programa, como quem escreve, ouve músicas, decora poemas etc. Como qualquer ser humano, ele sofria de falta de amor.

quinta-feira, abril 04, 2013

Saldo do dia...

 ..ou Drops de Eliza.

Ao som de Antes de começar (Moska).

Um belo dia você descobre que, ao contrário do que você sempre imaginou, o mundo não é dominado por um apocalipse zumbi antes das nove da manhã. Ele existe.
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Pode ser péssimo para a minha reputação (oi?) admitir isso, mas: eu gosto do bairrismo de Botafogo.
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Eu sei que estou na Zona Sul. Não porque Botafogo passa a ser subúrbio. Não por causa do trânsito infernal e intermitente do Jardim Botânico. Não pela praça que inaugurou (pelo menos acho que) essa mania de chamar os lugares de Baixo-Lugar-Descolado-da-Galera. Não pelo cheiro de batata frita que não é um cheiro de gordura velha, é cheiro de uma apetitosa batata frita. Eu sei que estou na Zona Sul quando me cobram 50 centavos por UMA cópia.
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Há momentos em que vejo alguma coisa e sinto uma vontade enorme de tirar uma foto para postar no feicebuque. Fosse um tempo atrás, eu me defenderia dizendo que não tenho um aparelho tecnológico o suficiente para fazer isso. Agora tenho. E vou resistir pelo menos até que as pessoas esqueçam a matéria sobre banalização da imagem que compartilhei outro dia. A hipocrisia vai bem, obrigada por perguntar.

O problema todo é que, como eu não fotografei, o mundo (aham...) nunca saberá a graça que foi a mãe e a funcionária tentando manter quieto um bebê de seis meses a fim de tirar a foto para o RG da criança. Acrobatas perdem.

A parte boa é que não veremos um comentário da minha irmã na foto dizendo que obviamente ela tem 3 meses ou dois anos.  Certeza mesmo só a minha inabilidade para reconhecer a idade dos pimpolhos.

Agora imagina o bebê apresentando o RG na porta da buátchi!
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O Registro de ocorrência é bom o bastante para os bancos, para o plano de saúde, para a secretaria de pós-graduação, para o drama com os amigos, para conseguir dinheiro emprestado, para que as pessoas exerçam a atividade cotidiana e tão necessária para a humanidade que é me mimar, para justificar faltas, ausências e crises de choro. Entretanto, não é bom o suficiente para o Detran. Quem entenderá? Sem falar que eles podiam ter me dito isso antes que eu pagasse uma fortuna pela cópia do BO insuficiente. Até o bebê pode ter um RG, menos eu.
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Só a cafeína expulsa a madrugada das pessoas.
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Se a padaria estava fechada, a programação matinal foi dar com a cara na porta, o cartão não tinha chegado, o BO não servia e o cartucho da impressora estava em falta, por que cargas de ingenuidade e otimismo eu fui achar que meu diploma estaria pronto?
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A vida funciona assim: tem o caderno lilás fofinho, tem o vermelho charmoso, tem o de capa dura, tem o quadriculado... e tem o que custa cinco reais e trinta e cinco centavos. E já é um sofrimento me convencer de que isso é barato.
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Moral da história: comer dá fome e sempre há Oz no fim do túnel.

quarta-feira, abril 03, 2013

Deglutição.


Para Lia e Helaine.

Para ler ao som de Socorro.

Começou ensaiando pena. Sentimento que a gente inventa para se sentir superior quando a insegurança anda braba. Afinal, os pobres coitados... Tão pobres e tão coitados. Incapazes de ver e fazer o óbvio. Era tão óbvio, nítido, claro e evidente que. Só tinha um jeito. E o jeito era combater primeiro a insegurança, trocar o disco dessa oscilação estranha entre usar a tal da pena contra si ou ensaiar qualquer motivo para exibir o quanto se pode sentar na muretinha mais alta porque-é-superior. Ensaio fraco. Execução péssima.

Depois tateou pela indignação. Como podiam? Tanta falta de amor-próprio. Tanto desamor, desperdício, desatino, desvontade. Os prefixos de negação eram tantos que poderiam abastecer senhas pelo resto da vida. Tudo era absurdo e a palavra grande escondia muitas faltas miúdas.

Por último, ou em terceiro – tríade, trindade, perfeição divina, só poderia vir agora a grande revelação e explicação de tudo no mundo. Mas espera aí. O lugar de esbanjar egocentrismo não era a primeira opção?

Em terceiro lugar veio um sentimento simples, a que a gente não costuma dar muita atenção. A palavra não é imponente, nem tem cara de coisa grave, densa. Até porque não é, é simples como uma vida que não precisa de dicas de autoajuda porque não tem a pessoa que se acha boa o bastante para ajudar.

Enfim, veio a identificação. Não era como um reflexo, não me entendam mal. É muito diferente de se olhar no espelho, ver no outro um pedaço de você, ficar se procurando em cada pedaço das coisas para ter a sensação de que se é alguma coisa. Não é isso. Tem que tirar o narcisismo da história, que ele fica é para quem tem tanto orgulho de si mesmo que se sente capaz de ter pena. É aquela sensação estranha de saber como uma outra pessoa se sente. Aquele momento de conseguir sentir o que o outro sente – e, por isso, é que a gente acaba tendo menos importância, saindo da lista de prioridades, porque é o sangue do outro ali precisando ser estancado. Algo que não sei resumir com uma expressão diferente de ‘estar no mesmo barco’. Não sou só eu, aliás. Estamos todos. Basta olhar um pouquinho mais de perto e você vai ver que todo mundo. Os bares estão cheios, como diria Criolo. 

Isso que você chama de vazio, sabe? Eu sei como você se sente.

E ponto. Não tem receita depois disso. Não tem três tapas na cara, dieta, horóscopo, passe ou tarô. Não tem a revista certa com os conselhos certos, a música ideal, o filme que explica tudo, o livro que faz você entender o quanto é mais denso que imagina. Acho que é raso mesmo, esse vazio. Abismo que se permite as antíteses mais toscas.

Não tenho resposta para além dessa fala velha de filme de sessão da tarde, mas é isso: eu-sei-como-você-se-sente. Claro que não deve ser completamente igual. Imagino que os abismos tenham profundidades, espessuras e tons diferentes para cada pessoa. Assim como imagino que no fim das contas, não sou só eu, mas todo mundo está meio perdido nesse naufrágio. Não deve ser à toa que tudo isso é tão cliché.

As pessoas parecem ter encontrado maneiras de deixar as coisas fluírem sem que a dor apareça. Eu também faço cara de quem não sabe de nada a maior parte do tempo. Mas sinto e sei esse vazio cliché. E é tão tão tão tão cliché que eu não sei preencher com nada diferente de um abraço. É bobo, mas é como eu sei.

Como nos parquinhos de infância, eu não solto se você prometer que também não vai soltar.

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Mesmo sem as tais receitas, a gente descobre que tem gente por aí que também sente – ou também não sente. Uma gente importante, que faz até vazio se transformar numa coisa mais nobre: angústia, alguns chamam. Eu me agarro e gosto de imaginar que eles são semi-deuses que me povoam de sentimento e poesia.

quarta-feira, março 13, 2013

"Meias verdades sempre à meia luz"

Para ler ao som de Cegos do Castelo (Nando Reis).

Ninguém percebia os olhos dele por trás da beleza. Não era 'por trás' como quem domina ou cobra dívida ou se esconde. Geograficamente, poderia ser ao lado. Ninguém perceberia os olhos dele ao lado da beleza dela. Como cantiga de infância em que os pronomes trocam e se fundem, e os gêneros já não fazem sentido. Porque nunca fizeram. Eram os olhos dele de bicho vivo e com fome olhando para os olhos dela de bicho vivo e sorridente e também faminto e refletindo essa fome que contagiaria outras fomes tantas fazendo valer o poema das facas e queijos colado na porta da geladeira. Como um mantra. Ninguém percebeu.

Também não poderiam, pois ela os tinha escondido propositalmente, os olhos. Não por maldade ou medo, é só que nos últimos tempos aprendera a guardar segredos. Sem o peso do que não pode ser dito, sem tabus, apenas alguma dose de preservação e um respeito estranho por sua própria solidão. Alguma dose do que não precisa ou não pode ser colocado em palavras. Jamais reconheceria, mas os escondia também por ciúmes - esse sentimento estranho que faz a gente querer só para a gente tendo a certeza de que não pode e não tem e nem faz sentido ter, posto que ninguém tem direito, mas deixa eu sonhar e brincar de ser feliz fingindo que a vida não é feita de quartas-feiras.

Acontece, porque a vida é cheia de paralelos e muitas coisas acontecem ao mesmo tempo, que as pessoas confundem vitrine com capa de jornal. Ignoram que mesmo esta é demasiado manipulada. A realidade não existe, afirmo sob a chuva de pedras que recebo junto à acusação de pós-moderna. A realidade é intocável, respondo sob o meu próprio sangue derramado junto com a minha culpa cristã - essa companheira inseparável - e para o silêncio do cenário de uma guerra recém finda.

Meu jardim floresce aos poucos e eu sei cuidar bem das minhas metáforas toscas, obrigada por perguntar. Acontece de flores brotarem ou de eu me emputecer e jogar sal.

Fato é que há cercas e eu vejo - e ninguém mais, já disse - trepadeiras que ultrapassam os limites previamente desenhados. Eu continuo desenhando, ora desdenho por pura incapacidade de resistir a trocadilhos infames, ora deixo a folhagem envolver os arames frágeis.

segunda-feira, março 04, 2013

Incomunicável

Nem tudo deve virar palavra. Nem tudo pode virar também. Palavra é feita para dizer e a gente só diz o que não consegue expressar de outra forma. As línguas têm jeitos outros de mostrar o que o corpo sente. Com ou sem separação metafísica. O corpo, esse construto social com o qual se convive achando que dá para ter relação de posse. Nem com o próprio nem com outros. Isso em que a gente habita e separa da categoria 'mente' fingindo que é possível dominar algum dos dois. É um. E nunca é. Assim como não é caso de fazer escolhas.

O corpo pede, manda, age por seus impulsos próprios e a gente segue num misto de obediência e rebeldia. Às vezes funciona para um lado, às vezes fracassa para o outro. Fato é que, mesmo que a gente finja não ouvir, os corpos dizem nitidamente o que querem.

Palavra não. Palavra a gente usa para dizer o que não quer, para ferir bruscamente as pessoas, para tentar desfazer erros, para destrançar textos decorados. Conversas servem para quando não se quer dizer, quando precisa amenizar, devolver objetos, resolver coisas. A voz é necessária quando existe a indiferença. Porque mesmo a raiva pode ser dita em gestos, expressões, portas batendo e choro, muito choro.

O que não é nada a gente tenta esquematizar, tenta dizer de um jeito que não pareça extremamente ofensivo, tenta desdobrar em mais frases o que deveria ser um simples e seco não.

O que se sente pode sempre ser silêncio, olhar, gemido, toque. Indecifrável, indescritível, incomunicável.

domingo, março 03, 2013

Às vezes preservo e suicido simultaneamente. Eu quero lambuzar e não ficar só lambendo as feridas. Sacrifício voluntário, lembra? Depois de subir no cadafalso não tem mais como voltar. Tem que deixar a corda envolver vagarosamente o pescoço e se deixar cair sem olhar o carrasco - ele não é outro que não o espelho.

(Ao contrário do que acreditava Susan Sontag, a vida só é possível com metáforas).

Escrever é como cozinhar. É preciso separar os ingredientes, lavar, descascar, cortar etc. etc. Só depois é que é possível misturar, fazer o molho e esperar que as coisas aos poucos ganhem outro gosto, consistência e virem, por fim, uma outra coisa. Uma coisa saborosa, esperemos.

O problema é que eu não sei cozinhar.

sexta-feira, março 01, 2013

"É urgente: eu ainda não fui feliz"

Ao som de Chá verde (Tiê).

A fome vem, afinal. Mesmo sem faca nas mãos. O apetite recobrado, os pequenos pedaços sorvidos na língua, mastigando, dissolvendo. Não tem como não perder o tom, não tem como não ser brega, cliché, estranho. Não tem como não ter essa sensação de que algo se perde. Um pouco da preservação sempre se perde, mas ganha novos meios de sentir a tal fome, novos jeitos de lambuzar os dedos, degustar as partes.

Nem precisa de proximidade. É possível manter preservação. É possível ficar perto com cortinas e telas no meio, desdobrar em imagens, frases, ir montando as peças do que pode ser bom sem ferir. Não precisa nem de voz. Pode ser tarde também - e pode ter certezas disfarçadas de hipóteses, pois, sabe-se lá quanto tempo depois, o fim é sempre o mesmo.

Enquanto não vem a dor de bater com a cara, resta o prazer de lidar com as pedras do muro. Arranhar de leve a pele, sentir o calor do concreto, o formato dos tijolos. Depois essa aflição desesperada vira ferida funda, mas deixa isso pra quando vier.

Agora é a hora de deixar o tempo correr, os dias passarem e os pequenos prazeres seguirem. A vida sempre segue.

domingo, fevereiro 17, 2013

Todo carnaval tem seu fim

É só uma questão de recobrar a saúde, recobrar as rédeas, recobrar a sanidade, o volume do rádio, a agenda de telefones, o formato do travesseiro. O relógio corre. Os dias idem. E não há tempo. Simplesmente não há tempo nem sanidade para criar de novo as próprias armadilhas. O segredo é desfazer o ponto à mesma proporção que teço. Difícil é saber medir e controlar a velocidade com que o sol bate nos olhos.

O tempo é necessário. A solidão é necessária. Qualquer tropeço me faz perder o rumo nesse caminho de quem não sabe aonde está indo. O sabor do passo, lembra? Uma hora ou outra esbarro num instante mais bonito que desvirtua, fragiliza.

Há mais cores e possibilidades e não há doença que Drummond não cure. Não há cabeça que o coração não ame e não há lembrança e rosto virado na rua que não faça lembrar o quanto o amor arde - mesmo quando a gente anda depressa demais tentando não rever os próprios passos. Vovó diria que tropeça, mas as pessoas da minha família nunca gostaram de alimentar estereótipos.

É preciso tempo e dedicação. É preciso convivência. É preciso não precisar e saborear devagar cada pequena folha de manjericão.

O carnaval acaba, sempre acaba. A coerência não, posto que ela nunca existiu.

Os vírus passam depois de determinado ciclo. Atos de um drama teatral: o momento da reflexão sempre chega. Ainda que seja a mais simplista, a mais cliché, a mais encerramento-birra de quem no fundo guarda o vestido estampado para o carnaval que vem.

Eu pinto o nariz quantas vezes for, mas o suor borra e a pintura se desfaz.

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Negras nuvens

Ao som de Canto de Ossanha.

"Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho"
(Chico Buarque, Sonhos sonhos são)

Um pesadelo estranho em pleno carnaval. Como o retorno de um pavor infantil e inexplicável de pessoas fantasiadas. Rostos pintados, corpos vestidos, fantasiados, travestidos. Passados por todo o canto: acenando, virando a cara, escarneando. Uma eterna procura por quem se quer encontrar e ao redor apenas os monstros. E o controle, meu deus (?), onde foi que eu deixei cair o controle?

Eu tento acordar, tateio no escuro à procura das cortinas que me trarão a luz do sol e vejo que elas já não existem, que nunca existiram, que o dia brilha forte na cara, queima a pele, cega os olhos - assim, pleonasticamente. O dia nascendo antes do tempo, o acaso que brinca de achar e perder me canta risonho a trilha sonora desencontrada de uma letra esquecida: que quem diz muito não é. Que todo alarde é conversa fiada, seu moço, e você nem percebeu que eu não sou capaz de jogar por muito tempo os jogos, não aguento muito tempo a máscara nem quando é carnaval. Porque pesa, porque o sol é quente e porque é melhor ver o mundo de olhos bem abertos e sem nada que tampe. Porque em lugar de máscara eu quero a fantasia. E eu tenho muito mais delas do que supus. Essas mesmas que eu invento, mato e morro no drama intenso e canastrão que vira uma conjunção de passados travestidos e repetitivos sob o sol escandante. Feito miragem às avessas, delírio, teto preto e as tais verrugas na memória.

Minha eterna fuga rodeia os mesmos quarteirões repetidas vezes, recruza com mesmos des-rostos, desgostos. Clichés, mundos e mundos de clichés.

O que a gente faz com isso que aparece quando não há amor-próprio, bom senso ou o que quer que seja em quantidade suficiente para respeitar os jogos, as regras, os próprios discursos, as preservações quando tudo na vida (ui, palavra grande!) se resume a fazer ou não fazer o que se tem vontade. Quando a fome que não engole de tanto desespero cruza multidões e se disfarça de curiosidade simplória.

Talvez ainda haja tempo de pular do barco, do bloco, do bonde. Talvez venham manhãs, talvez não passe de cinzas.

Submerso em confetes, esvai-se como o corpo que se esparrama em suor, ficou por debaixo da maquiagem, das fantasias.

terça-feira, janeiro 29, 2013

Como quem compra pão


Ao som de Sentidos (Zélia Duncan).

Paralelas que cruzam portais. Alguma preservação que pode ser censura. A sinceridade que nunca é desmedida, muito pelo contrário. Os turnos trocam. Os porteiros pensam sabe-deus-o-quê e eu vou levando os dias sem parar para poetizar. Não, não é que seja a tal poesia. Tem hora que não é dela mesmo que se carece. É algum tipo de balanço que é necessário às vezes, mas se permitem a repetitividade, ainda prefiro escolher o balanço de parquinho com seu ir e vir ambíguo em alta velocidade no meio da chuva.

Mas tem que contabilizar para seguir em frente. Transformar em palavras, dar significado, compreensão. Ajeitar para cada coisa seu lugarzinho devido na estante: o de lembranças-bibelôs sonhando com bonecos de gesso que conheçam o kama sutra.

Meço com fitas coloridas de senhor do Bonfim os cílios que se abrem em olhos tão famintos cuja lembrança desperta pensamentos vestidos sempre em vermelho sangue.

Contabilizo com tecidos de cortina a quantidade de pontos que pode ter um sorvete de flocos, embora tema o conforto das conchas mesmo distantes do barulho do mar.

Ensaio vinganças, ativismos, copio cenas de filmes que ninguém nunca viu.

Defino minha vida pelo sexo. Sexo que eu estudo. Sexo que eu desencavo nas pessoas cujas vidas já não me pertencem e eu bem sei que nunca pertenceram.

Conto meus dias pelas trepadas e ouso dizer estou na idade. Abro meus olhos pro mundo e encontro vez ou outra meu reflexo em outros pares diversos. Olhos que instigam. Olhos que investigam o prazer a fundo. Corpos não são mesmo vídeo games, afinal. Trepo para transformar em conto. Só sexo é escrita? Amor nunca? Paixão às vezes. Palavras encardidas e bobas, além de temporariamente fora do vocabulário. Fujo de qualquer coisa que me queira perto demais. Quero qualquer coisa que me queria longe. Procuro farpas, invento desculpas, provoco uma briga e digo que não estou.

Estou no reflexo dos seus olhos e nos meus que embaçam e fecham para sentir melhor as especificidades de cada pessoa. É muito mais que o cheiro da curva-do-pescoço com o ombro. A textura da pele nunca é igual, assim como o cheiro do sexo, o ritmo da língua.

A vulgaridade de sempre me cerca. Contudo, agora, creio-me com poros mais atentos ao que a experiência reserva. Percorro seus meandros, me deixo levar. Mais ainda exibo na janela os dentes e rosno para quem ousar passar da página quinze.

terça-feira, janeiro 15, 2013

Inclassificável

Ao som de Medo de Amar (Vinícius de Moraes)

Um desejo que é meio ocasião, meio discografia.

É a voz da Elis que você procura no cheiro do meu pescoço e só encontra um verso estranho, apesar de repetido à exaustão.

É a visceralidade do Ney Matogrosso que você quer no gosto do meu sexo, mas não sabe que é só esse-gosto-molhado-que-as-pessoas-têm-quando-tiram-a-roupa e que a sede de outro corpo é só essa sede-que-ninguém-mata.

Por maior que seja o tesão musical, não vão surgir nos arrepios da minha pele as palavras de Chico.

É só sexo.

Coisa de vagabundos perdidos no fim das noites de sexta que viram sábados quando a gente vira do avesso.

É só sexo.

Não transcende melodias, não estoura em metáforas, não explode em timbres - nem sequer mata a sede (apesar de subverter uma ou outra convicção).

Só vira a página, o disco e muda a roupa que não serve mais.

sexta-feira, janeiro 04, 2013

Cheiro de pele


Ao som de Num dia (Arnaldo Antunes)


Se o cheiro fica no corpo
depois de um abraço,
o jeito é lavar a pele.
Esfregar um por um os poros
e deixar escorrer
os cheiros, os suores, os plurais
mesmo se forem bons
até voltar pra minha solidão.

Até voltar pr'esse cheiro que eu finjo ser nenhum
e que esconde também meus pedaços de vida
que eu deixo escorrer em abraços,
misturar em odores,
refazer nos corpos que se trocam.

Até minha pele voltar assim:
(mesmo sem nunca ter ido a nenhuma parte)
pronta para dar e receber novos cheiros
que depois a água torna a levar
renova em novos ciclos
em rimas bobas
em poças
poços
mares
e torneirinhas.

A gente nega, esfrega e rega
a pele de outras vidas
que dá pra inventar.

Leva, lava e troca por sabão,
colônia, essência
e por fim
o cheiro limpinho de roupa de cama
(porque nem sempre é cheiro de gozo que povoa os dias)

Não é nos poros que eu levo os pedaços das gentes que me acompanham
Vale mais o contorno do abraço que meu corpo sabe e reaprende a cada um