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segunda-feira, maio 20, 2013

Prazer

Ela mergulhou no balde de cloro porque queria ver o efeito nocivo que aquilo teria. Queria observar enquanto as roupas manchavam e a pele ressecava sob o líquido nocivo. Ela mergulhou no balde de cloro porque leu a obra completa de Clarice Lispector antes dos dezoito anos e desde então vivia aquela ânsia esquisita de vida. Sofria os sentires por ter escolhido errado na prateleira. Tinham oferecido Rubem Fonseca, Fernando Sabino, Machado e outros tantos e tantos, mas desde o primeiro instante lhe atraíra aquela mulher que devorava baratas, aquele assassino que segurava maçãs, aquela criança que depenava galinhas.

A paixão já era antiga, se é que pode existir paixão que dure, e agora experimentava ápices. Precisava de mergulhos mais fundos, golpes mais dolorosos, precisava desesperadamente sentir algo mais concreto que a libertasse de todo aquele sofrimento metafísico.

Nunca mais história, nunca mais personagem. Uma ou outra citação perdida das canções de Chico Buarque, a prisão da eterna cicatriz de Elis brilhava na pele. Já vivera lutos, mas não sabia viver coisas. Inventava o quanto podia. Como se ainda fosse a mesma criança que arriscava aventuras entre as prateleiras. Sempre e nunca era só sentimento. As palavras grandes a acompanhavam, as dores fundas eram velhas companheiras. Mas a vida, essa que dizem real, palpável, constante. Essa não chegava nunca e era só um sofrimento a mais a espera.

Podia ter tacado fogo nos livros. A opção foi bastante estudada. Contudo, percebeu logo que os trechos decorados ecoariam em sua cabeça até o fim dos dias, atrelados à insegurança de estarem ou não milimetricamente corretos. Só mais um gole do desespero que sabia inútil, sem falar na inabilidade para lidar com esse elemento tão desconhecido (apesar de atraente).

A solução foi mesmo aquele balde. A companheira de quarto tinha feito as compras para a faxina da semana seguinte. A garrafa apetitosa de cloro brilhava no seu verde feio. Cogitou beber, mas não era o simples envenenamento que queria. Ela queria a vida que só arde na pele, que desmancha imagens, mancha roupas e desfaz certezas. Despejou-a inteira de uma vez. Divertiu-se durante os breves instantes em que o líquido se libertou, trocando o verde-feio pelo vermelho-vivo-cliché do balde.

O primeiro pé divertiu-se com a temperatura baixa. O segundo sacolejou de um jeito que o cheiro de seu conteúdo acordou e se espalhou pelo ar. Os cabelos foram mudando de textura conforme a cabeça afundava. Era bom, pensava repetidas vezes enquanto se sentia incapaz de prender a respiração e sentia aos poucos que seu pulmão se enchia. Era bom.

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