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terça-feira, maio 21, 2013

Castração

Para ler ao som de O doce e o amargo (Secos & Molhados).

O processo de descastração foi longo. Teve que matar os pais, comendo-os antes. Viveu o luto. Pôs roupa preta, depois a branca de quem reconcilia e busca paz. Podia ser só o luto de alguma cultura oriental que citava com propriedade forjada quando disparava a falar bobagens filosóficas e fundamentalistas nas praças públicas. Vomitou alguns clássicos da literatura, expeliu em diarreia boa parte da teorização sobre a humanidade enquanto sentia crescerem os pelos de seu corpo, as pontas dos caninos e os bigodes tão sensoriais.

O mundo se mede por onde é possível colocar a cabeça, pensava lambendo as próprias genitálias.

Foi necessário emagrecer toda a gordura que sobrava, pois vocês sabem que castração engorda porque não é possível fugir da fome, só transformá-la. Transformou tanto que não não podia simplesmente trocar uma coisa pela outra, elaborar um algo novo. Agora a fome a engolia ampla e a carne dos quadris guardava ao mesmo tempo o apetite do ventre, da boca e da alma, de modo que quando devorava, só sabia fazer inteira. Como um poema do Pessoa, mesmo que não soubesse de qual dos eles. Gozava com o corpo, trinchava a carne e sentia o regozijo da sua alma saciada. Acostumou a chamar de alma essa junção de estômago e vulva. Justo as partes menos humanas e, portanto, pouco passíveis de salvação.

Fato é que desfez e recosturou as trompas que o veterinário lhe arrancara sem dó e com meio comprimido de analgésico humano. Recobrou o vigor e a líbido. A razão não importava. Não era possível nem necessária.

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