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quarta-feira, agosto 17, 2016

Vontade de poesia


A poesia me lava a alma
Não como quem lê um poema
Na poltrona da biblioteca
Mas como quem esfrega o cloro
No limo do azulejo
Esfrega os sentires
Com preguiça e coragem
De quem apenas sabe
Que é preciso fazer

A poesia me nutre
Não como quem declama arrogante
Em palanque de ego
Mas como quem corta devagar o alimento
Refoga, mexe a panela e vigia o fogo
Até saber o ponto
Que às vezes passa ou nunca chega
Que também não tem medida exata
Mas que existe o gosto
De ver pronto e cheio o prato

A poesia me alimenta
Não como quem compra livros
Mas como quem prova devagar a comida
E mesmo assim queima a boca
Porque tem apetite de quem sabe
Que desconhece a fome
Como quem enche o prato
Das variedades da vida
E vai provando as diferentes partes
Como quem come escondido
Ou engole a seco
quando precisa lembrar
que esquece que há muitos pratos
e muitas fomes pra saciar ao redor

A poesia me sacia
Não como quem suspira
e faz pausa dramática
Ao final da frase
Mas como quem desmancha o corpo
na troca do toque
e ainda assim continua
até a exaustão

A poesia me acompanha
Como quem marca na pele
a lembrança
De que sentir fere e cansa
Feito rima desgastada
Mas que dela que ficam
as belezas desenhadas


domingo, novembro 30, 2014

Ode à preguiça ou conto da boa vizinhança

Para Lia Sousa, com agradecimento constante e especial a Ana Rocha.

Uma bela manhã de domingo acordou enraizada. A frase de impacto sugere mudanças bruscas, mas nós, pomposamente historiadorxs da ciência, aprendemos que as trocas de paradigma tem lá o costume de trazer crises como antecipação. Não poderia ser diferente essa metamorfose, embora pouco tenha de científica.
            Há algum tempo seu horizonte vinha se estreitando. As longas distâncias lhe haviam abandonado desde os tempos remotos em que acordava mais cedo que o despertador, passava roupa, fazia café forte e tomava o ônibus cheio para subir quase a serra. Por mais adiantada que estivesse, chegava sempre atrasada – prenunciando, gostarão de dizer alguns – seu desencaixe no mundo dos que se locomovem. Era inércia, dissera uma vez, aptidão para permanecer onde está. Contudo, existia nítida, ainda que não precursora, uma forma de resistir aos percursos habituais dos viventes. Dito assim parece ontem, mas já se contam tempos incontáveis desde que ela desaprendeu esse trajeto.
            Bocados de tempos depois, arriscaria caminhadas longas e livres pelos jardins que cercavam a cidade e a protegiam do mar. Gostava de percorrer as fronteiras sabendo que nunca ultrapassaria, sentia a segurança de quem está a dois passos do risco. Com o coração trêmulo e a testa queimada de sol, voltava para casa. Parava atrás da porta como quem chega ofegante de uma perseguição policial e sentia antes de entrar o peito acalmando de tudo o que embaralhava lá fora. Estava em casa – e essa segurança valia mais do que mil passeios.
            Ensaiou trocas menos perigosas em casas de amigxs. A segurança era quase a mesma, mas resistia um desconforto, um não saber onde por os pés misturado com esquecer o copo em algum lugar que mancha e pitadas de vontade de tirar ou permanecer com os sapatos, a depender da contrariedade do dono da casa. Casas? Não existem mais casas, pensaria depois de dentro de suas raízes fundas e fincadas.
            As companhias eram por demais agradáveis, havia comida gostosa e espaço de sobra para as preguiças mais variadas. Alguns amigxs ofereciam redes, colchonetes no chão da sala, sorvete e muita conversa dessas que tem gente que gosta de jogar fora, mas que ela gostava de guardar bem no fundo da lembrança e só retirar nos dias de neve em Nova York.
            Entre uma e outra peripécia ainda havia espaço para expedições mais aventureiras, como as que fazia (algumas vezes no plural) ao supermercado. Prateleiras estáticas, gôndolas temáticas e ilhas de congelados de onde eram anunciadas ofertas inúteis e um tanto divertidas. Ria da própria idiotice a cada vez que o locutor abaixava poeticamente os preços da ilha-de-congelados. A piada era tão interna que sentia a risada regando as raízes tímidas que então brotavam de si. Tempos de feijão no algodão passam rápido, saberia mais tarde. De cada supermercado levava algumas cervejas em promoção e a certeza que o pão sempre acaba, não importa o quanto se tenha em casa. Tudo isso pode soar uma mistura de alhos com bugalhos, pensariam os não iniciados, aqueles que desconheciam os pequenos delitos que se comete na ponta dos dedos de uma pela outra, de todas pelo sentido mais puro da palavra coletivo.
            Percebendo que o algodão se estreitava e logo seria tempo de procurar seu pedaço de terra com adubo, tentou o que qualquer pessoa faria diante do inevitável: evitar. Parecia simples, se as raízes cresciam, era só uma questão de cortar. A estratégia foi tão abrupta quanto ineficaz e previsível. Matriculou-se numa academia de ginástica. Esse lugar que só pelo nome já soa hostil, cuja mensalidade ela automaticamente convertia em garrafas de cerveja e se arrependia. Contudo, se pago, melhor se feito, repetia como mantra a cada manhã que o suor escorria pela testa franzida de incompreensão da vida, das coisas, das pessoas, dos corpos, dos padrões e de tudo que legitimava a existência e a permanência de uma academia de ginástica em nossa sociedade. Inconformada, ria do ridículo de cada pronome possessivo, enchia sua garrafa d’água e voltava para casa prometendo esconder-se em qualquer outro lugar do mundo.
            Qualquer outro lugar do mundo pode ser Madri, Salvador, Campinas – ou apenas uma farmácia. Dessas que existem em cada esquina e escondem tantos mistérios quanto alguém é capaz de imaginar. O primeiro mistério inclui se deixar seduzir por um lugar que tem princípios de existência – controle social, reprodução de padrões estéticos rígidos, medicalização do normal – bastante parecidos com os do sítio anteriormente citado. Todavia, aqui os aparelhos de tortura são substituídos pelos maravilhosos estímulos do consumo e a dor muscular pelo mais habitual e menos desgastante vazio pós-compra. Do sabonete ao anticoncepcional adesivo, passando por esmaltes e cremes de cabelo, são vários os sinais de que fomos bem domesticadas como boas moças vaidosas. Tanto quanto são evidentes e profundos os buracos no cheque especial. O parque de diversões acabaria como todos os outros, mas o vazio-pós-compra merece ser afogado num brinde.
            A parada mais habitual do que pedágio em estrada foi também a única quase capaz de frear o crescimento das raízes. É também a mais aprazível, cercada de gente e de uma alegria incomparável que é a de ver a mesa sumindo sob as garrafas. Prazer cada vez mais distanciado pelo preço da cerveja que acompanha o IPTU da cidade. O mês que começa a terminar lá pelo meio sempre chega antes do fim da mesa e a embriaguez aumenta a vontade de voltar pra casa, pro conforto, pra cama.
            Fim último de todas as noites, objetivo primordial de todo amaciante de roupas que, ela não sabia, era o adubo mais fértil para as raízes que lhe cresciam dos membros, das costas e dos cabelos já há muito tempo antes daquela manhã de domingo. O sol nasceu como de hábito na janela descoberta, luz entrando sem cerimônia ou lubrificante, cortava os olhos descobertos de quem deitara nem faz muito tempo – por razões de tese ou embriaguez, pouca diferença faz. Fato é que ela tentou mover-se, fechar as cortinas, beber um gole d’água, mas era tarde demais. A pele que antes se amadeirava no sol agora era toda árvore, grossa, áspera, pesada. As raízes adentravam o colchão como se ela e ele nunca tivessem vivido separados. A individualidade se perdia, como acontece com aqueles casais de paixão distraída. O lençol desbotara o rosado e virava folhagem verde e densa, acolhedora e confortável.
            Não enxergando meios de lutar, até porque os óculos restavam inalcançáveis sobre a mesa ao lado, rendeu-se. As raízes eram fundas e o solo confortável parecia umedecido e adubado o suficiente para sobreviver algum tempo. O depois não importava.

terça-feira, dezembro 03, 2013

Exposição

Para ler ao som de Pra você dizer o nome (5 a seco).


Metade de mim é palavra.

Digo isso sem qualquer dimensão de medidas.
Como quem reparte um pedaço de comida
com desproporção inconsciente.
Minha metade-palavra
às vezes se cala.
Ou finge
e se escreve de outras formas.

Palavra-imagem,
palavra-comida,
palavra-sentimento,
palavra-masturbação,
palavra-gozo.

Mesmo quando eu digo
em vez de escrever
(e olha que eu venho aprendendo a dizer,
a olhar nos olhos e nomear sentimentos),
é sempre palavra.

Tenho aprendido que palavra tem gosto, cor, corpo, textura.
Palavra tem som, cadência, ritmo.
Palavra tem até maquiagem
e se entrava no alto das pernas.

Mas tem hora
que mesmo a palavra mais ensaiada
(da repetição e da saia)
não pode ser dita. 

Fica pairando na garganta
sem engolir de volta
por falta de lubrificante
ou simples medo de que machuque.

Fica boiando no copo
e desmantela sem derreter,

como esses gelos artificiais de hoje em dia.

quarta-feira, julho 17, 2013

Digestesia

Para Taynara Barcelos e Thiago Ortiz (Tropicália)

Lambo,
devoro,
mastigo
o mundo,
as carnes,
os gostos,
os cheiros

que me passam pela garganta
pouco depois.

Às vezes engasgo,
cuspo,
vomito.

Noutras passa direto.

As enzimas e sucos
me seguram no estômago
as rimas que engulo.
De um jeito ou de outro
sempre viram texto,
embora nunca repita as texturas
do que me tece as fibras,
as vísceras, as veias
e o sangue que corre
do sexo à boca
em segundos.

terça-feira, julho 16, 2013

Inesperado

Despercebido e inesperado, ele chega. Precisaria de outro nome para descrever, porque nunca é igual e até o novo nome ele traz. Não poderia não amar o que já é sinônimo de amor. Ah, poderia... É claro que poderia porque assim é que é a liberdade, mas ao mesmo tempo não é uma escolha. Ao menos não consciente. O corpo escolheu e eu o culpo com os dois mil anos de cristianismo negado que também me fazem separar de mim a carne e a pele com as quais convivo.

Não há separação, classificação. Há o amor. Que quando dito não diferencia o verbo que prova que existe da exclamação surpresa por sua existência. Amor de pica, amor de corpo, amor de gozo, de trilha sonora, de palavra. Amor simplesmente. Amor de copos de cerveja, de histórias repetidas. Amor sem pretexto. Amor que ousa assumir as vontades. Amor birrento, mimado e infantil. Amor-fruta-mordida-e-tranquilidade. Amor que se acha definido em poesias e canções, e que ao mesmo tempo se sabe indefinível. Amor que deixa o verão pra mais tarde. Amor que acaba antes das onze, que morre de saudade, mas que sabe esperar o dia seguinte. Amor que respeita quando não é dia. Amor que investiga milímetros de corpo mais do que detalhes da rotina. Amor que vive e não pede desculpas por amar. Amor que acorda e se esconde no cheiro do pescoço. Aliás, deve ser esse o único detalhe repetido. Não importa quanto o amor mude, ele sempre se esconde na curva do pescoço com ombro, ali onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao de outra. Amor que testa essa teoria.

terça-feira, julho 02, 2013

Embriagai-vos de poesia!

Então,
Vamos encher a cara de poesia?

Poesia-licor,
poesia-cerveja,
poesia-uísque,
poesia-cachaça.
Vamos encher a vida
dessa poesia
que diariamente
nos embriaga!

Desce mais uma, garçom,
mas não conte as garrafas.
Que hoje o meu porre
vai até madrugada.

Eu quero beber poemas,
entornar palavras,
vomitar delírios,
brindar desgraças.

Pois a realidade é que costuma
deixar-me uma puta ressaca.

29/09/2008

Cela


Eu já quase te quis pra ficar,
mas aí você foi
e quem ficou fui eu.
No canto da cela,
você da cadeia
e eu de cavalo
que eu galopo
com a mesma vulgaridade
e a cara cheia de sempre.

Uma coisa é assumir a fome,

outra é a coragem para matá-la.