Para Lia e Helaine.
Começou ensaiando pena.
Sentimento que a gente inventa para se sentir superior quando a insegurança
anda braba. Afinal, os pobres coitados... Tão pobres e tão coitados. Incapazes
de ver e fazer o óbvio. Era tão óbvio, nítido, claro e evidente que. Só tinha
um jeito. E o jeito era combater primeiro a insegurança, trocar o disco dessa
oscilação estranha entre usar a tal da pena contra si ou ensaiar qualquer
motivo para exibir o quanto se pode sentar na muretinha mais alta
porque-é-superior. Ensaio fraco. Execução péssima.
Depois tateou pela indignação.
Como podiam? Tanta falta de amor-próprio. Tanto desamor, desperdício, desatino,
desvontade. Os prefixos de negação eram tantos que poderiam abastecer senhas
pelo resto da vida. Tudo era absurdo e a palavra grande escondia muitas faltas
miúdas.
Por último, ou em terceiro –
tríade, trindade, perfeição divina, só poderia vir agora a grande revelação e
explicação de tudo no mundo. Mas espera aí. O lugar de esbanjar egocentrismo
não era a primeira opção?
Em terceiro lugar veio um
sentimento simples, a que a gente não costuma dar muita atenção. A palavra não
é imponente, nem tem cara de coisa grave, densa. Até porque não é, é simples
como uma vida que não precisa de dicas de autoajuda porque não tem a pessoa que
se acha boa o bastante para ajudar.
Enfim, veio a identificação. Não
era como um reflexo, não me entendam mal. É muito diferente de se olhar no
espelho, ver no outro um pedaço de você, ficar se procurando em cada pedaço das coisas para ter a sensação de que se é alguma coisa. Não é isso. Tem que tirar o narcisismo
da história, que ele fica é para quem tem tanto orgulho de si mesmo que se
sente capaz de ter pena. É aquela sensação estranha de saber como uma outra
pessoa se sente. Aquele momento de conseguir sentir o que o outro sente – e,
por isso, é que a gente acaba tendo menos importância, saindo da lista de
prioridades, porque é o sangue do outro ali precisando ser estancado. Algo que
não sei resumir com uma expressão diferente de ‘estar no mesmo barco’. Não sou só eu, aliás. Estamos
todos. Basta olhar um pouquinho mais de perto e você vai ver que todo mundo. Os bares estão cheios, como diria Criolo.
Isso que você chama de vazio, sabe? Eu sei como você se sente.
E ponto. Não tem receita depois
disso. Não tem três tapas na cara, dieta, horóscopo, passe ou tarô. Não tem a revista certa com os conselhos
certos, a música ideal, o filme que explica tudo, o livro que faz você entender
o quanto é mais denso que imagina. Acho que é raso mesmo, esse vazio. Abismo que se permite as antíteses mais toscas.
Não tenho resposta para além dessa
fala velha de filme de sessão da tarde, mas é isso: eu-sei-como-você-se-sente.
Claro que não deve ser completamente igual. Imagino que os abismos tenham
profundidades, espessuras e tons diferentes para cada pessoa. Assim como
imagino que no fim das contas, não sou só eu, mas todo mundo está meio perdido
nesse naufrágio. Não deve ser à toa que tudo isso é tão cliché.
As pessoas parecem ter encontrado
maneiras de deixar as coisas fluírem sem que a dor apareça. Eu também faço cara
de quem não sabe de nada a maior parte do tempo. Mas sinto e sei esse vazio
cliché. E é tão tão tão tão cliché que eu não sei preencher com nada diferente
de um abraço. É bobo, mas é como eu sei.
Como nos parquinhos de infância, eu não solto se você prometer que também não vai soltar.
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Mesmo sem as tais receitas, a
gente descobre que tem gente por aí que também sente – ou também não sente. Uma
gente importante, que faz até vazio se transformar numa coisa mais nobre:
angústia, alguns chamam. Eu me agarro e gosto de imaginar que eles são semi-deuses que me povoam de sentimento e poesia.