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domingo, abril 14, 2013

Um jogo

Ao som de Me liga (Paralamas do Sucesso)

Você me atira uma bolinha verde.
Eu a escondo em revanche
e penso que poderia ser azul
por pura falta do que pensar.

Você cola a bolinha na vitrine
Eu ponho na testa pra ver se gruda
Você coloca trilha sonora
e arremessa de volta.

Eu guardo.
Você guarda.
Poderia ser um jogo.
Poderia ser um conto.
Mas são só imagens.



A compra

Porque o verão começaria em poucos dias; porque a esposa faria uma longa viagem a trabalho; porque com o fim do semestre os dias ficariam folgados; porque desaprendera a divertir-se sozinho; porque a luz que entrava pela janela no final da tarde deixava tudo mole, deprimente, vazio. Por essas razões todas e por nenhuma delas em especial, naquele dia ensolarado de dezembro, decidira comprar um gato. Uma gata, para ser mais preciso. Que não estava disposto a disputar com ninguém o papel de macho dominante da casa.

Não sabia direito como funcionava isso. Cansara de ver contatos compartilhando imagens de animais abandonados nas redes sociais. Cogitou adotar um dos maltrapilhos com semblante amoroso, mas isso o desviaria do objetivo. Seu desejo era comprar uma felina.

Numa dessas  lojas especializadas de shopping, conseguiu a mais felpuda. Uma filhotinha da raça angorá que se divertia com qualquer pedaço de papel que caísse no chão, como faria qualquer gato vira-lata, mas ele não soube por falta de experiência.

Assim funcionava: a cada fim de tarde, quando o sol entrava ameaçador pela janela, enforcando a sala com aquela beleza ímpar, lotando o cômodo bem decorado de solidão, ele esfregava de leve os pés no dorso da gatinha e sentia em retribuição aquele ronronar gratuito de quem também sofre de falta de amor.

Como quem inventa um hobby pra ocupar o tempo, como quem contrata uma garota de programa, como quem escreve, ouve músicas, decora poemas etc. Como qualquer ser humano, ele sofria de falta de amor.

quinta-feira, abril 04, 2013

Saldo do dia...

 ..ou Drops de Eliza.

Ao som de Antes de começar (Moska).

Um belo dia você descobre que, ao contrário do que você sempre imaginou, o mundo não é dominado por um apocalipse zumbi antes das nove da manhã. Ele existe.
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Pode ser péssimo para a minha reputação (oi?) admitir isso, mas: eu gosto do bairrismo de Botafogo.
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Eu sei que estou na Zona Sul. Não porque Botafogo passa a ser subúrbio. Não por causa do trânsito infernal e intermitente do Jardim Botânico. Não pela praça que inaugurou (pelo menos acho que) essa mania de chamar os lugares de Baixo-Lugar-Descolado-da-Galera. Não pelo cheiro de batata frita que não é um cheiro de gordura velha, é cheiro de uma apetitosa batata frita. Eu sei que estou na Zona Sul quando me cobram 50 centavos por UMA cópia.
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Há momentos em que vejo alguma coisa e sinto uma vontade enorme de tirar uma foto para postar no feicebuque. Fosse um tempo atrás, eu me defenderia dizendo que não tenho um aparelho tecnológico o suficiente para fazer isso. Agora tenho. E vou resistir pelo menos até que as pessoas esqueçam a matéria sobre banalização da imagem que compartilhei outro dia. A hipocrisia vai bem, obrigada por perguntar.

O problema todo é que, como eu não fotografei, o mundo (aham...) nunca saberá a graça que foi a mãe e a funcionária tentando manter quieto um bebê de seis meses a fim de tirar a foto para o RG da criança. Acrobatas perdem.

A parte boa é que não veremos um comentário da minha irmã na foto dizendo que obviamente ela tem 3 meses ou dois anos.  Certeza mesmo só a minha inabilidade para reconhecer a idade dos pimpolhos.

Agora imagina o bebê apresentando o RG na porta da buátchi!
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O Registro de ocorrência é bom o bastante para os bancos, para o plano de saúde, para a secretaria de pós-graduação, para o drama com os amigos, para conseguir dinheiro emprestado, para que as pessoas exerçam a atividade cotidiana e tão necessária para a humanidade que é me mimar, para justificar faltas, ausências e crises de choro. Entretanto, não é bom o suficiente para o Detran. Quem entenderá? Sem falar que eles podiam ter me dito isso antes que eu pagasse uma fortuna pela cópia do BO insuficiente. Até o bebê pode ter um RG, menos eu.
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Só a cafeína expulsa a madrugada das pessoas.
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Se a padaria estava fechada, a programação matinal foi dar com a cara na porta, o cartão não tinha chegado, o BO não servia e o cartucho da impressora estava em falta, por que cargas de ingenuidade e otimismo eu fui achar que meu diploma estaria pronto?
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A vida funciona assim: tem o caderno lilás fofinho, tem o vermelho charmoso, tem o de capa dura, tem o quadriculado... e tem o que custa cinco reais e trinta e cinco centavos. E já é um sofrimento me convencer de que isso é barato.
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Moral da história: comer dá fome e sempre há Oz no fim do túnel.

quarta-feira, abril 03, 2013

Deglutição.


Para Lia e Helaine.

Para ler ao som de Socorro.

Começou ensaiando pena. Sentimento que a gente inventa para se sentir superior quando a insegurança anda braba. Afinal, os pobres coitados... Tão pobres e tão coitados. Incapazes de ver e fazer o óbvio. Era tão óbvio, nítido, claro e evidente que. Só tinha um jeito. E o jeito era combater primeiro a insegurança, trocar o disco dessa oscilação estranha entre usar a tal da pena contra si ou ensaiar qualquer motivo para exibir o quanto se pode sentar na muretinha mais alta porque-é-superior. Ensaio fraco. Execução péssima.

Depois tateou pela indignação. Como podiam? Tanta falta de amor-próprio. Tanto desamor, desperdício, desatino, desvontade. Os prefixos de negação eram tantos que poderiam abastecer senhas pelo resto da vida. Tudo era absurdo e a palavra grande escondia muitas faltas miúdas.

Por último, ou em terceiro – tríade, trindade, perfeição divina, só poderia vir agora a grande revelação e explicação de tudo no mundo. Mas espera aí. O lugar de esbanjar egocentrismo não era a primeira opção?

Em terceiro lugar veio um sentimento simples, a que a gente não costuma dar muita atenção. A palavra não é imponente, nem tem cara de coisa grave, densa. Até porque não é, é simples como uma vida que não precisa de dicas de autoajuda porque não tem a pessoa que se acha boa o bastante para ajudar.

Enfim, veio a identificação. Não era como um reflexo, não me entendam mal. É muito diferente de se olhar no espelho, ver no outro um pedaço de você, ficar se procurando em cada pedaço das coisas para ter a sensação de que se é alguma coisa. Não é isso. Tem que tirar o narcisismo da história, que ele fica é para quem tem tanto orgulho de si mesmo que se sente capaz de ter pena. É aquela sensação estranha de saber como uma outra pessoa se sente. Aquele momento de conseguir sentir o que o outro sente – e, por isso, é que a gente acaba tendo menos importância, saindo da lista de prioridades, porque é o sangue do outro ali precisando ser estancado. Algo que não sei resumir com uma expressão diferente de ‘estar no mesmo barco’. Não sou só eu, aliás. Estamos todos. Basta olhar um pouquinho mais de perto e você vai ver que todo mundo. Os bares estão cheios, como diria Criolo. 

Isso que você chama de vazio, sabe? Eu sei como você se sente.

E ponto. Não tem receita depois disso. Não tem três tapas na cara, dieta, horóscopo, passe ou tarô. Não tem a revista certa com os conselhos certos, a música ideal, o filme que explica tudo, o livro que faz você entender o quanto é mais denso que imagina. Acho que é raso mesmo, esse vazio. Abismo que se permite as antíteses mais toscas.

Não tenho resposta para além dessa fala velha de filme de sessão da tarde, mas é isso: eu-sei-como-você-se-sente. Claro que não deve ser completamente igual. Imagino que os abismos tenham profundidades, espessuras e tons diferentes para cada pessoa. Assim como imagino que no fim das contas, não sou só eu, mas todo mundo está meio perdido nesse naufrágio. Não deve ser à toa que tudo isso é tão cliché.

As pessoas parecem ter encontrado maneiras de deixar as coisas fluírem sem que a dor apareça. Eu também faço cara de quem não sabe de nada a maior parte do tempo. Mas sinto e sei esse vazio cliché. E é tão tão tão tão cliché que eu não sei preencher com nada diferente de um abraço. É bobo, mas é como eu sei.

Como nos parquinhos de infância, eu não solto se você prometer que também não vai soltar.

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Mesmo sem as tais receitas, a gente descobre que tem gente por aí que também sente – ou também não sente. Uma gente importante, que faz até vazio se transformar numa coisa mais nobre: angústia, alguns chamam. Eu me agarro e gosto de imaginar que eles são semi-deuses que me povoam de sentimento e poesia.