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sexta-feira, setembro 28, 2012

Estátua de gesso

Para ler ao som de Não há cabeça.

"Essa tristeza que o amor me deu
É a coisa mais bonita dentro do meu eu".
(Marina Lima)


Em primeiro lugar, pega-se entre as mãos a massa disforme. Bloco sólido, neutro. Quase sem querer a gente esbarra e vê que é possível tocá-lo. Depois que encosta as pontas dos dedos, vê que sai uma eletricidade estranha. Há um tipo desconhecido de ímã que parece pedir que as linhas das mãos percorram toda a sua superfície.

De início ela é impenetrável. Há que lubrificar as mãos e umidificar aos pouquinhos a massa até que ela possa ser moldada, penetrada, modificada – até que vire alguma coisa. Mesmo que a gente não tenha sabido dar um nome, que não tenhamos conseguido transformar numa obra de arte, numa estátua, num enfeite de estante, num bibelô, nem nada disso, dava para ver que do misturar de mãos e massa, do magnetismo, da vontade de transformar dedos e corpos numa única explosão de gozo constante; dava pra ver que de tudo isso se poderia ter feito alguma coisa.

A gente fez a poesia palpável que se mostra em constelações da pele, no tom rosado sob a luz de fim de tarde. A gente até fingiu que tinha mais do que pele, misturou álcool no momento de moldar a massa; a gente colocou algumas cores de outros cenários; a gente tocou partes fundas, desejos irreveláveis, frustrações comuns. A gente viveu versos.

Numa segunda-feira qualquer veio um vento e quebrou a estátua de gesso.


Que nem era gesso, que nem tinha nome, mas que era algo mais maleável como faixas de gaze – espuma branca lavando os pés – que a gente enrola igual a um quase amor de promessas telefônicas. Todo quase amor tem um calcanhar de Aquiles que pode se quebrar de uma hora pra outra mesmo que não seja quebrável. Deixa meia dúzia de versos na cabeça. Ficam cheiros, gostos, gozo, a mesma incompreensão da pele na pele e aquela sensação de que um dia desses, num desses encontros casuais talvez a gente se encontre, talvez a gente encontre explicação.

quinta-feira, setembro 27, 2012

Poça d'água


É bom ter conselhos para dar do alto da minha completa falta de bom senso. É fácil dizer que a vida não precisa ser assim, que é claro que tem como, que basta um gesto, um sorriso, que é simples e fácil. Para quem?, mandam perguntar com os punhos cerrando os copos meio cheios de cerveja quente. A mesa é uma ilha cercada de outros passados, outras vidas estouram de diferentes lados sugerindo uma cena de surrealismo de quinta, com pipocas falantes fritando ao redor. Corte brusco, porque precisa produzir as idiotices atuais.

Quando tem tanta esquisitice para não se orgulhar se acumulando sobre as caixas de papelão e restos de isopor. O altruísmo da mais funda falsidade. Um desejo de dizer para quem não faz a menor diferença que, olha, dá sim para ser menos idiota que isso, para ter um pouquinho mais de amor-próprio. Ou pelo menos mais poesia - frase-sussurro para quem nem tem nem sabe onde compra esse dicionário.

Vai dar pra dizer quando a ressaca trouxer aquela amnésia fajuta. Ou quando a minha cara de pau já tiver polida o bastante para dizer deslavadamente que não, não lembro - com direito a despedidas teatrais, teatro de quinta, também não precisa dizer. Quando for possível não querer essas vergonhas de que se orgulhar. Os fracassos bonitos para botar na estante ou só distribuir como conselhos de gente experiente.

Mais uma dose. Mais um gosto. Mais uma página dessas que a gente amassa e joga fora. Uma história dessas que a gente não registra nem conta, mas que um dia alguém recupera para desfazer falsas tentativas de glória interior.

Eu gosto é do estrago. O insosso também vale. Quem disse que o diferente precisa ser bom? Quem disse que a parte boa de escrever pode ser algo além de juntar letras, formar frases, colocar vírgulas e pontos?

Às vezes a gente sai do poço para alçar poças. Afunda dos  pés no esgoto e finge pensar que isso é alguma espécie de evolução - posto que a teleologia acena sempre de algum canto. Saio do poço, piso na poça e sei que não é nada mais do que um cenário diferente.

[Não digo a ninguém que no fundo do poço e na superfície da poça sempre tem um pedaço de mar e um reflexo de céu]

segunda-feira, setembro 24, 2012

Sob esse prisma...

Para Carol e Lissandra.

Para ler ao som de Alívio imediato (Engenheiros do Hawaii).

Será que leitor vira personagem? É que não é qualquer coisa saber que de alguma forma a minha válvula de escape ajuda a escoar angústias outras, pensar que as minhas madrugadas insones povoam as manhãs atarefadas e sufocadas de quem fica longe-perto.

As coisas mudam, as pessoas mudam, átomos se dividem e se esfumaçam em desenhos feitos com a ponta dos dedos no pára-brisa do carro. Os ciclos começam e terminam, as bolhas fazem-se necessárias até o momento em que estouram. É difícil pensar em uma parte só, é difícil observar o quadrado da mesa distorcido em um triângulo, mas a gente precisa aprender a lidar com as novas formas que a vida desenha - que a gente rascunha, esboça e depois fica tentando ajeitar sem cair no cliché dos clichés de que a vida não tem borracha, comparação tão desnecessária para quem sempre se orgulhou de só saber usar caneta.

As lembranças ficam, o desconforto, o não-saber-lidar, as conjugações inapropriadas para os verbos, a curiosidade e a necessidade de entender são inevitáveis. Daqui a um tempo passa, cicatriza, vira piada e quem sabe a mesa não se preenche em risadas leves outra vez? É só uma questão de construir um mundo em que isso caiba.

Sentir-se em casa no mundo é sensação dos tolos, o desconforto - e por que não dizer, o desespero - existe naqueles que sabem que a vida pode ser mais, nos que viram e sentiram na ponta dos poros que a vida pode ser mais do que consentimento. A vida é vontade e a gente segue. Com carinho, respeito ao outro e a si mesmo para ir fazendo cada pedacinho de um mundo que possa ser chamado de nosso. Pode não ser possível implodir esse que nos atira bombas todas as manhãs, nos desampara.

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Não saberia dizer quanto tempo fazia que estava andando. Os saltos altos, ainda que não fossem muito finos, causavam um desconforto no calcanhar. Nada que parece motivo o suficiente para parar, os outros também não paravam, seguia. A roupa era apertada demais, parecia tornar os passos mais lentos, mas se todos andavam, devia mesmo ser preciso continuar. A maquiagem soava pesada demais àquela hora do dia, oleosa demais para o calor daquela cidade, mas, mais uma vez, ninguém parecia se importar com isso. A impressão que tinha era a de que todos acordavam todos os dias sem sentir todos os incômodos que povoavam sua cabeça com excesso de grampos e fios esticados por excessos de calor. Ninguém parecia perceber. Todos mantinham suas expressões impassíveis, sóbrias, eficientes, imutáveis - e caminhavam. Barulhos ritmados do atrito das solas no chão.

No meio da pressa e vigiada pelo relógio, todas as manhãs ela segue o protocolo, sente a maquiagem que lhe cobre o rosto, as roupas que lhe apertam as pulsações da pele, os saltos que parecem aprisionar seus passos invariavelmente destinados ao mesmo lugar. Ir vir, vestir, despir, bater o cartão, a continência, fazer a ronda, a guarda, a prova, sorrir, preencher, assinar, submeter, anular o que a gente nem sabe porque nunca viu que pode ser diferente até o dia que...

Um dia acordou e repetiu todo o protocolo ensaiado de todos os dias, mas sem querer um grampo escapou dos cabelos, rodopiou fugitivo entre as mãos e foi sugado pela força gravitacional. Como seria o mais lógico a fazer, ela abaixou e olhou para baixo a fim de pegar o objeto. E foi assim: quando parou de andar, quando deixou escapar um detalhe de sua perfeição, quando não seguiu seus passos no mesmo trote de todos os outros, quando afrouxou de leve o pano da roupa para conseguir abaixar, quando pensou em levar a mão à testa para enxugar o suor que se formava da mistura de pós e tintas que lhe cobriam todos os dias o rosto. Ela olhou e descobriu que não havia chão.

sexta-feira, setembro 21, 2012

E depois de tanto e tanto tempo é vinte e um de setembro de novo, depois de tantas outras datas que se passaram, tanta coisa que a gente finge que ressignifica pra ver se pára de doer. Um dia a dor se convence ou o calendário passa, sempre passa. Os dias correm rápidos, as estações mudam, o sol abre e mesmo os dias nublados vão mostrando sua beleza leve, fresca por traz do tom de cinza.

Não dá mesmo para exigir que o sol nasça deliberadamente no meio do inverno, mas quando vem, do jeito mais cliché, mais ultrapassado, mais adolescente e mais tosco, as lágrimas evaporam. Mas algumas músicas ainda tocam em alguma parte da cabeça...

Corpos em movimento
Universo em expansão
O apartamento que era tão pequeno
Não acaba mais
Vamos dar um tempo
Não sei quem deu a sugestão
Aquele sentimento que era passageiro
Não acaba mais
Quero explodir as grades
E voar
Não tenho pra onde ir
Mas não quero ficar
Novos horizontes
Se não for isso, o que será?
Quem constrói a ponte
Não conhece o lado de lá
Quero explodir as grades
E voar
Não tenho pra onde ir
Mas não quero ficar
Suspender a queda livre
Libertar
O que não tem fim sempre acaba assim

terça-feira, setembro 18, 2012


Surge tímida e quase imperceptível aos olhos desatentos. Há que parar, olhar para fora e ver que dali do outro lado existe uma beleza outra. Singela e veloz.

segunda-feira, setembro 17, 2012

Mar!

Ela encostou no meu corpo e disse 'mar'. Não, não foi isso. Ela tocou de leve a minha alma - porque ali, naquele momento, naquela nudez, naquele vento, naquele cenário, só era possível expor almas - e foi a minha que ela tocou quando me pediu que dissesse junto com ela. Eu disse 'mar' da forma mais atrapalhada. Não teve uníssono, nem timbres harmoniosos, teve a palavra nervosa pela fome de ouvir mais palavras.

Eu disse 'corpo' porque nunca saberia dizer qual a parte, posto que meu corpo inteiro estremeceu de um jeito estranho. Pode ter sido um pedaço de cotovelo ou antebraço, ou algumas dessas partes quaisquer que a gente esquece de erotizar - e nem imagina que podem despertar sensações tão gritantes. Meu corpo inteiro sentiu o calor que certamente também era de um corpo inteiro. Fiquei pensando se a alma se divide em partes e se há sensações diferentes quando se toca o dedão-do-pé-da-alma ou o-fundo-do-sexo-da-alma. Eu não sei se existem essas partes, porque, assim como o corpo, ela me tocou a alma inteira.

Me fez imaginar sóis e tardes de praia talhando feito escultura em madeira aquela temperatura que eu senti tão breve. Não só isso, a cor era de sol. Dia de verão em que a pele é assim elaborada durante todo o dia para, ao cair da tarde, refrescar-se em um banho que não diminui a temperatura da pele que já não é sol e sim fôlego de vida. Fôlego efêmero herdado do mergulho-gesto que lava e lavra as almas tão mais imorais do que os corpos. Meu corpo se desfez em ondas metafóricas do mar que você trazia na voz e na garganta. Toque fortuito que é inteiro mar e não só pela palavra que disse - dissemos - e continua gritando que só se abre depois da água no pescoço.

terça-feira, setembro 11, 2012

Entrelaçado

Para ler ao som de Tempo de pipa (Cícero).

"Vamos nos espalhar sem linhas".

Eu não sei como faz para desatar nós e nem sei se é necessário - ou se vale a pena. Há nós apertados, há pronomes pessoais retos tão pessoais e tão plurais que não dá para desfazer assim por qualquer bobagem. Não que futuro seja bobagem, não que projetos completamente diferentes também o sejam, mas é que alguém sempre sai machucado das coisas e preservar tudo no seu devido lugar é sempre a minha maneira de evitar que o sangue respingue em mim quando ainda tem as nem-tão-velhas feridas assim tão mal fechadas.

Quando o nó fica assim muito preso, a gente machuca as unhas e não consegue. Às vezes usa os dentes e parece que só fica tudo mais amarrado.

Sei não... Enquanto os nós não se desmancham, nada impede que nos deixemos levar pelos laços que nossos corpos fazem sozinhos, sem que a gente queira e porque a gente quer.

quinta-feira, setembro 06, 2012

Uma crônica paulistana

Para ler ao som de Concreto & Asfalto (Engenheiros do Hawaii).

É possível ir da Luz para a Liberdade desde que se saiba seguir as cores certas, contornar as linhas certas. Dá até para encontrar Consolação nos já conhecidos fundos de copo de cerveja ou fundo de garrafa verde-garrafa entre saltos, silicone, cílios postiços e neons convidativos da Rua Augusta.

São Paulo é cidade de que muito se ouve - e eu, do alto do meu habitual provincianismo de metrópole, nunca parei para prestar atenção. Paulista, Augusta, Anhangabaú, Bexiga, Ipiranga, Butantã, Vila Madalena, Pacaembu, Jabaquara, as pessoas diziam esses nomes engraçados, com seus fonemas tão bonitos - e eu cantarolava baixinho, às vezes sem nem mesmo emitir som, o binômio insosso "concreto e asfalto".

A minha ingenuidade arrogante teimava em confundir o bom e o belo, achando que este último só se podia encontrar nas 'belezas' construídas e naturalizadas das terras cariocas. Querendo ou não, no fim das contas a gente sempre carrega um montão de preconceitos e o trabalho da vida é ir querendo jogá-los fora pelas janelas de avião, pelos trilhos do metrô ou deixar a força do vento levar quando bate deliciosamente no rosto e bagunça cabelos coloridos no meio da Avenida Paulista.

Preconceito bobo, xenofobia boba, construção boba de identidade que a gente teima em fazer negando o outro para tentar ser alguma coisa sem saber que não podem ser além de sonhos, como diria o Álvaro de Campos saído de sua tabacaria para um chão escuro da terra-luz das pa-la-vras. São Paulo é terra de lavrar palavras, de ouvir sotaques da terra de ninguém. De se sentir em casa por ganhar tão fácil o direito de ser só mais um na multidão. São Paulo me engole em Avenidas, me perde em linhas de ônibus, São Paulo dos descaminhos do excêntrico, da moça que sai do metrô e deixa no ar poluído essa beleza do sujo, essa beleza de quem conhece a fundo tudo o que é feio.

São Paulo é terra de me apaixonar pelo movimento, pelo trem que cruza rápido a estação bonita de um progresso que já é passado. Terra em que o cinza espelhado das ruas esconde passados apagados, gritos abafados pela palavra progresso - dos quais a gente ouve ecos em nomes próprios que não se explicam, em amontoados de bairros e histórias que são só flashes, quebra-cabeças, pedaços de um isso que parece estar sempre se fazendo. E de que eu não conheci mais do que alguns pedacinhos.

São Paulo tem uma atmosfera, alguma coisa estranha que envolve e inebria, uma espécie de capa, num tom de cinza forte, bonito, marcante, opressivo e vivo - que os desavisados dirão ser apenas nuvem de poluição.

segunda-feira, setembro 03, 2012

Ao momento presente

Para ler ao som de Ta Douleur (Camille Dalmais).

É preciso fazer alguma coisa quando se ganha um presente. É preciso, em primeiro lugar, segurar a caixa que colocam em nossas mãos para que ela não caia no chão. Depois, tirar os laços, caso eles existam, romper o lacre com a calma educada de quem sabe o que fazer ou com a pressa voraz de uma criança faminta por vida, rasgando o papel, espalhando seus pedaços pelo chão com ansiedade. Quando o presente está ali, finalmente aberto, a gente sempre imprime alguma expressão no rosto. Logo no primeiro olhar o presenteador atento consegue ver se é alegria, desgosto, desconforto, desagrado, carinho, surpresa, alegria, felicidade, ou cara-de-quem-estava-esperando-apenas-isso. Independente do que pensa e do que veste no rosto - posto que existem os presenteados mais atores - a pessoa pega o conteúdo do pacote. Segura com os dedos, agradece entusiasmada ou burocrática. Aquilo que foi escolhido, comprado ou feito com carinho, embalado, protegido, transportado etc. - aquilo foi dado e agora pertence à outra pessoa.

Não é seu aniversário, não é Natal na Leader Magazine, não é nem mesmo Páscoa - a data dos melhores presentes. Era para ser um dia comum, com uma aflição disfarçada de um saudade antecipada, uma agonia da distância, mas aí os ventos de um agosto que já era para ter-se ido trazem um assovio sombrio e rimado de uma angústia sua. E aí, você nem sabe que sua angústia colocou numa gaveta imaginária o meu medo de acreditar, dobrou o guardanapo com cara de quem rejeita os rótulos mais verdadeiros e quis, quis com força, quis com a voracidade de criança que rasga a embalagem do presente, te dizer de dentro de um abraço que passa, que há tempestades nos mares abertos, mas o melhor de tudo é perceber os músculos movendo-se seguros em cada braçada. São gelados e salgados os primeiros golpes que a gente leva no rosto, mas lavam a alma.

E por mais que por fora a gente espere sorriso, abraço etc., quem dá um presente não espera absolutamente nada além de dar o presente, além de que a pessoa presenteada ganhe uma coisa bonita e tenha alguns momentos de alegria. Toma, é seu, pode pegar (se quiser).

domingo, setembro 02, 2012

Tudo novo de novo (Paulinho Moska)


Vamos começar
Colocando um ponto final
Pelo menos já é um sinal
De que tudo na vida tem fim

Vamos acordar
Hoje tem um sol diferente no céu
Gargalhando no seu carrossel
Gritando nada é tão triste assim

É tudo novo de novo
Vamos nos jogar onde já caímos
Tudo novo de novo
Vamos mergulhar do alto onde subimos

Vamos celebrar
Nossa própria maneira de ser
Essa luz que acabou de nascer
Quando aquela de trás apagou

E vamos terminar
Inventando uma nova canção
Nem que seja uma outra versão
Pra tentar entender que acabou

Mas é tudo novo de novo
Vamos nos jogar onde já caímos
Tudo novo de novo
Vamos mergulhar do alto onde subimos