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segunda-feira, setembro 24, 2012

Sob esse prisma...

Para Carol e Lissandra.

Para ler ao som de Alívio imediato (Engenheiros do Hawaii).

Será que leitor vira personagem? É que não é qualquer coisa saber que de alguma forma a minha válvula de escape ajuda a escoar angústias outras, pensar que as minhas madrugadas insones povoam as manhãs atarefadas e sufocadas de quem fica longe-perto.

As coisas mudam, as pessoas mudam, átomos se dividem e se esfumaçam em desenhos feitos com a ponta dos dedos no pára-brisa do carro. Os ciclos começam e terminam, as bolhas fazem-se necessárias até o momento em que estouram. É difícil pensar em uma parte só, é difícil observar o quadrado da mesa distorcido em um triângulo, mas a gente precisa aprender a lidar com as novas formas que a vida desenha - que a gente rascunha, esboça e depois fica tentando ajeitar sem cair no cliché dos clichés de que a vida não tem borracha, comparação tão desnecessária para quem sempre se orgulhou de só saber usar caneta.

As lembranças ficam, o desconforto, o não-saber-lidar, as conjugações inapropriadas para os verbos, a curiosidade e a necessidade de entender são inevitáveis. Daqui a um tempo passa, cicatriza, vira piada e quem sabe a mesa não se preenche em risadas leves outra vez? É só uma questão de construir um mundo em que isso caiba.

Sentir-se em casa no mundo é sensação dos tolos, o desconforto - e por que não dizer, o desespero - existe naqueles que sabem que a vida pode ser mais, nos que viram e sentiram na ponta dos poros que a vida pode ser mais do que consentimento. A vida é vontade e a gente segue. Com carinho, respeito ao outro e a si mesmo para ir fazendo cada pedacinho de um mundo que possa ser chamado de nosso. Pode não ser possível implodir esse que nos atira bombas todas as manhãs, nos desampara.

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Não saberia dizer quanto tempo fazia que estava andando. Os saltos altos, ainda que não fossem muito finos, causavam um desconforto no calcanhar. Nada que parece motivo o suficiente para parar, os outros também não paravam, seguia. A roupa era apertada demais, parecia tornar os passos mais lentos, mas se todos andavam, devia mesmo ser preciso continuar. A maquiagem soava pesada demais àquela hora do dia, oleosa demais para o calor daquela cidade, mas, mais uma vez, ninguém parecia se importar com isso. A impressão que tinha era a de que todos acordavam todos os dias sem sentir todos os incômodos que povoavam sua cabeça com excesso de grampos e fios esticados por excessos de calor. Ninguém parecia perceber. Todos mantinham suas expressões impassíveis, sóbrias, eficientes, imutáveis - e caminhavam. Barulhos ritmados do atrito das solas no chão.

No meio da pressa e vigiada pelo relógio, todas as manhãs ela segue o protocolo, sente a maquiagem que lhe cobre o rosto, as roupas que lhe apertam as pulsações da pele, os saltos que parecem aprisionar seus passos invariavelmente destinados ao mesmo lugar. Ir vir, vestir, despir, bater o cartão, a continência, fazer a ronda, a guarda, a prova, sorrir, preencher, assinar, submeter, anular o que a gente nem sabe porque nunca viu que pode ser diferente até o dia que...

Um dia acordou e repetiu todo o protocolo ensaiado de todos os dias, mas sem querer um grampo escapou dos cabelos, rodopiou fugitivo entre as mãos e foi sugado pela força gravitacional. Como seria o mais lógico a fazer, ela abaixou e olhou para baixo a fim de pegar o objeto. E foi assim: quando parou de andar, quando deixou escapar um detalhe de sua perfeição, quando não seguiu seus passos no mesmo trote de todos os outros, quando afrouxou de leve o pano da roupa para conseguir abaixar, quando pensou em levar a mão à testa para enxugar o suor que se formava da mistura de pós e tintas que lhe cobriam todos os dias o rosto. Ela olhou e descobriu que não havia chão.

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