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domingo, novembro 30, 2014

Ode à preguiça ou conto da boa vizinhança

Para Lia Sousa, com agradecimento constante e especial a Ana Rocha.

Uma bela manhã de domingo acordou enraizada. A frase de impacto sugere mudanças bruscas, mas nós, pomposamente historiadorxs da ciência, aprendemos que as trocas de paradigma tem lá o costume de trazer crises como antecipação. Não poderia ser diferente essa metamorfose, embora pouco tenha de científica.
            Há algum tempo seu horizonte vinha se estreitando. As longas distâncias lhe haviam abandonado desde os tempos remotos em que acordava mais cedo que o despertador, passava roupa, fazia café forte e tomava o ônibus cheio para subir quase a serra. Por mais adiantada que estivesse, chegava sempre atrasada – prenunciando, gostarão de dizer alguns – seu desencaixe no mundo dos que se locomovem. Era inércia, dissera uma vez, aptidão para permanecer onde está. Contudo, existia nítida, ainda que não precursora, uma forma de resistir aos percursos habituais dos viventes. Dito assim parece ontem, mas já se contam tempos incontáveis desde que ela desaprendeu esse trajeto.
            Bocados de tempos depois, arriscaria caminhadas longas e livres pelos jardins que cercavam a cidade e a protegiam do mar. Gostava de percorrer as fronteiras sabendo que nunca ultrapassaria, sentia a segurança de quem está a dois passos do risco. Com o coração trêmulo e a testa queimada de sol, voltava para casa. Parava atrás da porta como quem chega ofegante de uma perseguição policial e sentia antes de entrar o peito acalmando de tudo o que embaralhava lá fora. Estava em casa – e essa segurança valia mais do que mil passeios.
            Ensaiou trocas menos perigosas em casas de amigxs. A segurança era quase a mesma, mas resistia um desconforto, um não saber onde por os pés misturado com esquecer o copo em algum lugar que mancha e pitadas de vontade de tirar ou permanecer com os sapatos, a depender da contrariedade do dono da casa. Casas? Não existem mais casas, pensaria depois de dentro de suas raízes fundas e fincadas.
            As companhias eram por demais agradáveis, havia comida gostosa e espaço de sobra para as preguiças mais variadas. Alguns amigxs ofereciam redes, colchonetes no chão da sala, sorvete e muita conversa dessas que tem gente que gosta de jogar fora, mas que ela gostava de guardar bem no fundo da lembrança e só retirar nos dias de neve em Nova York.
            Entre uma e outra peripécia ainda havia espaço para expedições mais aventureiras, como as que fazia (algumas vezes no plural) ao supermercado. Prateleiras estáticas, gôndolas temáticas e ilhas de congelados de onde eram anunciadas ofertas inúteis e um tanto divertidas. Ria da própria idiotice a cada vez que o locutor abaixava poeticamente os preços da ilha-de-congelados. A piada era tão interna que sentia a risada regando as raízes tímidas que então brotavam de si. Tempos de feijão no algodão passam rápido, saberia mais tarde. De cada supermercado levava algumas cervejas em promoção e a certeza que o pão sempre acaba, não importa o quanto se tenha em casa. Tudo isso pode soar uma mistura de alhos com bugalhos, pensariam os não iniciados, aqueles que desconheciam os pequenos delitos que se comete na ponta dos dedos de uma pela outra, de todas pelo sentido mais puro da palavra coletivo.
            Percebendo que o algodão se estreitava e logo seria tempo de procurar seu pedaço de terra com adubo, tentou o que qualquer pessoa faria diante do inevitável: evitar. Parecia simples, se as raízes cresciam, era só uma questão de cortar. A estratégia foi tão abrupta quanto ineficaz e previsível. Matriculou-se numa academia de ginástica. Esse lugar que só pelo nome já soa hostil, cuja mensalidade ela automaticamente convertia em garrafas de cerveja e se arrependia. Contudo, se pago, melhor se feito, repetia como mantra a cada manhã que o suor escorria pela testa franzida de incompreensão da vida, das coisas, das pessoas, dos corpos, dos padrões e de tudo que legitimava a existência e a permanência de uma academia de ginástica em nossa sociedade. Inconformada, ria do ridículo de cada pronome possessivo, enchia sua garrafa d’água e voltava para casa prometendo esconder-se em qualquer outro lugar do mundo.
            Qualquer outro lugar do mundo pode ser Madri, Salvador, Campinas – ou apenas uma farmácia. Dessas que existem em cada esquina e escondem tantos mistérios quanto alguém é capaz de imaginar. O primeiro mistério inclui se deixar seduzir por um lugar que tem princípios de existência – controle social, reprodução de padrões estéticos rígidos, medicalização do normal – bastante parecidos com os do sítio anteriormente citado. Todavia, aqui os aparelhos de tortura são substituídos pelos maravilhosos estímulos do consumo e a dor muscular pelo mais habitual e menos desgastante vazio pós-compra. Do sabonete ao anticoncepcional adesivo, passando por esmaltes e cremes de cabelo, são vários os sinais de que fomos bem domesticadas como boas moças vaidosas. Tanto quanto são evidentes e profundos os buracos no cheque especial. O parque de diversões acabaria como todos os outros, mas o vazio-pós-compra merece ser afogado num brinde.
            A parada mais habitual do que pedágio em estrada foi também a única quase capaz de frear o crescimento das raízes. É também a mais aprazível, cercada de gente e de uma alegria incomparável que é a de ver a mesa sumindo sob as garrafas. Prazer cada vez mais distanciado pelo preço da cerveja que acompanha o IPTU da cidade. O mês que começa a terminar lá pelo meio sempre chega antes do fim da mesa e a embriaguez aumenta a vontade de voltar pra casa, pro conforto, pra cama.
            Fim último de todas as noites, objetivo primordial de todo amaciante de roupas que, ela não sabia, era o adubo mais fértil para as raízes que lhe cresciam dos membros, das costas e dos cabelos já há muito tempo antes daquela manhã de domingo. O sol nasceu como de hábito na janela descoberta, luz entrando sem cerimônia ou lubrificante, cortava os olhos descobertos de quem deitara nem faz muito tempo – por razões de tese ou embriaguez, pouca diferença faz. Fato é que ela tentou mover-se, fechar as cortinas, beber um gole d’água, mas era tarde demais. A pele que antes se amadeirava no sol agora era toda árvore, grossa, áspera, pesada. As raízes adentravam o colchão como se ela e ele nunca tivessem vivido separados. A individualidade se perdia, como acontece com aqueles casais de paixão distraída. O lençol desbotara o rosado e virava folhagem verde e densa, acolhedora e confortável.
            Não enxergando meios de lutar, até porque os óculos restavam inalcançáveis sobre a mesa ao lado, rendeu-se. As raízes eram fundas e o solo confortável parecia umedecido e adubado o suficiente para sobreviver algum tempo. O depois não importava.

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