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quinta-feira, julho 22, 2010

Ainda membro

Alguma coisa, algum dia, teve que surgir do nada. Mas nada vai embora do nada. As tais das rupturas continuadas a que tanto nos apegamos. É um processo de mudanças e continuidades. Não adiantou dar todos os passos para frente de uma vez só. Correndo a gente cai e pode ter um abismo embaixo - que não se viu porque olhar só pra frente dá nisso.
Segurei antes de cair apenas. Abrir mão e admitir que não é possível romper consigo é quase heróico para quem precisa acreditar em heroísmo. Nunca acreditei em nada, mas nos últimos tempos tenho me agarrado a muitas coisas para não cair. Estava à beira do precipício mesmo e era a única coisa que enxergava como opção a fazer.
O problema é que quando a gente se segura por vários lados, é como se estivesse amarrado - e nem por isso deixa de estar sobre um tal abismo. Soltar uma das pontas foi quase como serrar a sangue frio a própria perna - a terceira, é claro, essa que a gente arranca, amputa, corta e sempre volta a nascer.
Eu já sabia que a gente nascia muitas vezes na vida. Mas assim em partes, assim tão esquartejada, assim brigando para não ter esse membro daninho, danoso ligado a mim. Cortei a tal da perna a sangue frio e sem anestesia. Enquanto via o sangue escorrendo e a carne se rasgando, esperei pacientemente a sensação de alívio chegar. Como quando a comida é pouca e você espera que sacie.
Respirei calmamente enquanto olhava. Era para ter outro rumo. Era para ser outra coisa, mas quando olhou o tornozelo amarrado por uma corrente escura, não era o da perna sangrenta e caída no chão. Estava presa por todos os lados. Era dessas pessoas que não tinham para onde fugir e por isso precisavam se esconder. Encarou a perna solta sem raiva, com uma certa resignação.

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