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terça-feira, novembro 11, 2008

Ainda no Banco de trás

A mulher escrevia poemas no banco de trás do carro como quem pára e espera o instante em que a água começa a ferver. Caderno e caneta nas mãos, olhar no horizonte e vento nos olhos fazendo-a lacrimejar bonito e sentir-se mais emocionalmente ligada ao fato de estar viva. Esperava um poema como uma primeira bolha da ebulição de seus pensamentos sempre vagos. Nunca importara-se muito em vagar por aí, protegia-se com uma antiga máxima segundo a qual "para quem não sabe aonde está indo, qualquer lugar serve"...

E por isso se deixava fingindo não saber nem se importar com o destino do veículo - apenas o trajeto lhe era indispensável. Acostumara-se a ser levada, acostumara-se a achar saboroso o gosto das estradas, às vezes surpreendentes, noutras reconhecíveis. O que nunca sabia era se a familiaridade se dava por de fato estar num lugar onde já estivera, ou se depois de um tempo começava a achar as paisagens parecidas. Mas isso não fazia lá muita diferença; era como uma fórmula: bastava acender o fogo e ficar esperando, logo a água entraria em ebulição. Uma semi-certeza. Como uma verdade maior que todos sabem mas ninguém diz: a poesia estava no caminho. Não. Nenhuma verdade secreta, subjetiva ou teleológica. Estava no caminho porque estava no caminho. Em cada árvore que passava e não num suposto destino final. Até porque este não existia, era como aquele sonho de "ser em si". Pronto.

Do barulho da chave girando, o tremor do carro acordando, o solavanco natural que invertia a ordem do mundo fazendo todas as coisas andarem para trás só porque ela estava era andando para frente.

Na velocidade, era certo, sempre se chegava aos cem graus e as moléculas-sinapses entregavam-se àquela festa silenciosa e íntima. As linhas preenchiam-se como um coração acalentado. Contudo, o conforto que a inundava quase sempre se parecia mais com o que se tem quando se chega em casa debaixo de uma tempestade - o alívio após o furacão.

Mas uma vez (quase como "era uma vez..."), houve uma enchente grave e não foi possível entrar em casa, o furacão não passou, a água estacionou nos noventa e cinco graus: o papel ficou em branco. O desespero não foi seguido de alívio e a lágrima que caiu - e sequer se deu ao trabalho de pingar no papel para soar mais bonito - não foi por causa do vento nos olhos.

A dor, afinal, era como a de um matemático que após anos e anos de trabalho descobre uma equação ridiculamente irresolúvel. A mulher acabara de perceber o vazio de vagar sem rumo e a falta do que quer que fosse a tragou dolorosamente como se Deus, arrependido de tê-la criado uma vez, ao invés de matá-la resolve-se deglutí-la. Mastigá-la vagarosa e impiedosamente, mas com um apetite genuíno e, portanto, incontestável.

Ali, vendo sua carne amolecer entre os dentes de uma divindade para ela sequer conceituada, a única saída era um ato heróico. Salvar a si mesmo era um imperativo irremediável e inadiável, como qualquer coisa o é quando enfim acontece.

GRITOU.

O carro parou mostrando que não se conduzia sozinho, mas que havia um homem ali. Meu Deus, havia um homem ali! A constatação da humanidade óbvia de outrem afundou sua cabeça torturada num barril cheio d'água. Esse tempo todo se deixara cegar pela idéia de um caminho, de uma paisagem, de umas drogas de móléculas fazendo festa, de umas palavras bobas num papel que jamais seria lido! Como pudera se deixar afundar por essas tolices se todo o tempo estivera diante do milagre maior da existência?

Milagre este que, apesar de milagroso, em sua realidade aparentemente intangível estava era bastante aturdido com aquela história de grito, "pare o carro!" etc. Enquanto ela aturdia-se era do caso de ser de repente tão mais vivo o mundo real e tão latente a necessidade de estar no mundo real quando se está diante de um homem.

Como se de novo a temperatura da água subisse um grau, só por charme, dando a entender que um dia ferveria, mas não agora. Ela saiu do carro. Pois se só encararia se fosse a última saída, que fosse. Ela iria.

Para quem gostava tanto do caminho do vento, o sol penetrou doído nos poros. Tudo bem, pensou, doer faz parte. Com medo de parte ainda ser apenas um pedaço do caminho, espantou o pensamento com as mãos no ar, como fossem mosquitos, de um jeito doce de personagem de desenho animado.

Quase pensou que se fosse uma personagem de desenho animado jamais precisaria enfrentar a humanidade de um homem, mas teve medo de que esse pensamento a acovardasse.

Por um instante, pensou se teria coragem de beijá-lo. Depois, viu o quanto soaria bobo. Tendo a chance única na vida de um gesto grande não seria burra a ponto de encolhê-lo num gesto bobo. Pensou na doçura que têm as impulsividades bobas. Pensou na redução. Sentiu-se menor como quando a lágrima poderia ter caído no papel mas fez questão de cair sabe-se lá onde.

Sorriu ao mesmo tempo vencida e triunfante: troca. Ele trocou com ressalvas. Apesar de um homem, não era fraco. Foi para o banco do carona. Ela assumiu a direção. Seguiram assim o resto do caminho (?!). Ele sendo um homem e ela sendo uma mulher. Não pela obrigação de o serem, mas pela ocasião natural de serem homem e mulher. O vidro da janela fechado quase até em cima. O caderno vazio caído inerte - sozinho - no banco de trás. A água fervente, evaporando.

3 comentários:

  1. nao li tudo. vou ler com certeza... com mais calma é claro... e permitir-me as considerações mais poéticas...

    A ebulição está chegando. que bom saber que você está abrindo a porta do abismo.

    Mas você é forte. E mesmo que não seja, já chegou aí. E quem chega aí, e são poucos... poucas... muuuuuito poucas... sabe realmente se enfrentar.

    E a gente nem se fala quando se encontra.

    A gente devia se falar mais.

    Parabéns. De qualquer forma continue.

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  2. Para quem não sabe aonde está indo qualquer ligar serve... gostei...
    Gosto do seu estilo.

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  3. Ah uma dica ao mr.durden poulain, Quando for reler tente embalar ao som de Velvet Underground - Guess I M Falling In Love (Instrumental Versoin)pq fica muito bom...

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