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segunda-feira, dezembro 26, 2011

Continho infanto-juvenil sem título [aceito sugestões]

Esbaforida e atrasada como sempre, Mariana não sabia que estava pronta para iniciar um conto infanto-juvenil. Papel inconsciente, como tinha de ser, entrou na sala se sentindo única e o sendo no meio de tantas outras iguais e desconhecidas.

Não teve tempo de reparar que estava cercada por paredes brancas, algumas teias de aranha próximas ao teto, lâmpadas fosforescentes que ofuscavam os olhos se a gente olhasse diretamente para elas. Mariana não sabia porque não olhou para cima. Além das outras de sua idade que esperavam roendo unhas e/ou olhando os próprios joelhos com expressão de resignado apavoramento havia uma pessoa diferente. Uma mulher cuja altura não se podia mais que supor, já que estava sentada atrás de uma mesa na ponta oposta à porta pela qual Mariana acabara de entrar. Percebeu que era àqueles olhos frios que deveria se dirigir e achou por bem fazê-lo antes de ser interpelada pensando que, com isto, poderia evitar algum constrangimento, talvez aliviasse um pouco a sua barra ao mostrar-se disposta a colaborar.

Documentos, bravejou a moça aparentemente supervalorizando o tamanho da sala ou a distância que a mesa colocava entre si e sua vítima. A voz era de uma rudeza incongruente se fôssemos considerar o rostinho dócil e jovial de quem deveria estar do lado de cá da mesa. Não parecia ter vocação para algoz com aquelas florzinhas cor de rosa que escorriam pelo decote também pouco apropriado para a ocasião. Se fosse comigo aposto que barravam, pensou nossa Marianinha sem conseguir com este pensamento alterar a expressão apavorada.

Retirou do bolso suado do jeans última-moda-e-descolado uma caderneta escolar com as extremidades puídas e desbotadas, esperando que a moça de voz bronqueada não desconfiasse de suas incursões acidentais pela máquina de lavar. Estendeu o papel que fazia as vezes de documento para aqueles dedos finos, unhas curtas com esmalte escuro evidenciando personalidade forte e uma incompatibilidade esquisita com o colar florido do pescoço, o que fez o olhar da menina decair novamente no decote. Percebendo o atrevimento, a mulher rapidamente levou uma das mãos à região do colo, surpreendentemente deixando os seios ainda mais à mostra ao ajeitar o crachá.

O retângulo plástico com dizeres oficiais trouxe um leve estremecimento de pânico que logo desviou os de Mariana para seus próprios documentos que a outra agora tinha apoiado sobre a mesa enquanto preenchia o que parecia ser um formulário.

Assine aqui, ordenou com a mesma rispidez.

Mariana procurou nos bolsos reais e em alguns imaginários uma caneta que sabia inexistente, uma espécie de pretexto para apoiar e enxugar as mãos em si mesma antes de ser obrigada a tocar a outra. Sentia todos os seus dedos trêmulos e incapazes de empunhar uma caneta, menos ainda de escrever o que quer que fosse. Muita coisa passava por sua cabeça, um futuro perdido, as expressões terrivelmente decepcionadas de seus pais, um descompasso com os amigos, talvez os perdesse, já que seria privada de tudo o que eles teriam - a classificação grandiloquente era necessária devido ao seu total desconhecimento do que seria esse tudo, só sabia que estava perdendo.

Sem escolha, pegou a caneta que por sorte foi deixada sobre a mesa, não havendo necessidade de encostar na pele da outra. Coisa que temia e desejava simultaneamente. Paradoxo até então incompreensível para a jovem menina. Debruçou quase todo o tronco sobre a mesa a fim de disfarçar os tremores e esconder o resultado catastrófico que previa do que deveria ser o seu próprio nome. Temeu ser tomada por uma falsária de si mesma, isso devia ser ainda um outro crime cuja nomenclatura não sonhava conhecer.

Ficou novamente ereta jogando os longos cabelos para trás numa tentativa frustrada de sedução. A outra parecia impassível, concentrada em sua função cruel de ordenar e acuar as jovens presentes na sala.

As suas mãos ficaram vazias e encharcadas de suor frio. Um nervosismo intenso lhe percorria o corpo como um choque elétrico nunca experimentado, mas em seu total desconhecimento, tinha certeza de que seria essa a sensação de enfiar um dedo na tomada. De repente, imaginou-se vítima das torturas de que ouvira falar nas aulas de História, perseguidos políticos, desaparecimentos. Uma vertigem estranha lhe tirou o ar, fazendo-a procurar equilíbrio e deparar-se com aquelas lâmpadas fortes e opressoras movendo-se em círculos estranhos.

Está tudo bem?, perguntou a moça com a voz abrandada, já de pé ao seu lado como que a postos para o caso de um desmaio.

Mariana se recompôs como pode, ou seja, tentou fixar o olhar em algum ponto que parecesse mais estático que aquelas luzes dançantes.

Está sim, respondeu um pouco ofegante.

Ótimo, então pode sentar-se. A prova começará dentro de alguns minutos.

2 comentários:

  1. Eu consegui -porque, na verdade, você conseguiu me fazer- sentir cada sensação que a Mariana teve! A luz, o suor, a tontura...Nossa! Eu,em minhas leituras, quase poucas completas, tive essa experiência com dois livros. As mais fortes, digo. Com O estrangeiro, do Camus, e com o "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", da Clarice, que, por sinal, era seu.

    Bom,mesmo!!!

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    1. Obrigada, Ortiz! Esse conto nasceu de uma prova que eu fiscalizei numa sala só com Marianas, aí fiquei pensando que aquilo merecia um conto, mas título que é bom, nada ainda...

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