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quarta-feira, março 28, 2012

Poema

Para ler ao som de Poema  (Cazuza)

à Bárbara Araújo, Lili Figueiredo e CEP 20 000

Houve um tempo em que a minha medida para as coisas na vida era a poesia. Era em versos a minha escala de observação. Fazer um poema hoje me fez lembrar de um tempo em que, bons ou ruins, os poemas afloravam de uma vontade imensa de um jeito poético de olhar a vida. Parece que já se passou muito tempo, parece que vidas e vidas rolaram enquanto os versos foram se lapidando em parágrafos pragmáticos. A vida ficou acadêmica. A escrita ficou sisuda, travada.

A literatura hoje é quase mais um dos objetos de consumo, uma espécie de droga que me mostra que, por trás de tanta vida real, ainda existe alguma coisa que independe de publicações, títulos, quadros brancos ou negros.



Hoje eu queria o tempo em que a gente ia lá, pegava o microfone e falava poesia. Há quem diga (eu?) que eram só versos bobos de uma adolescência em transbordamento. Não sei se era mesmo poesia, não sei o que faz com que uma coisa seja e a outra não. Não tenho mais a pretensão besta de definir qualquer coisa. Era alma o que a gente cuspia ali em perdigotos literais que ficavam no microfone em que tantos passavam.

E a gente trocava um pouco de cada alma no cuspe, no grito, na força que era tanta e tão grande que a gente não sabia o que fazer com ela. A gente fez alguma coisa com ela? Acho que fizemos várias e por isso mesmo que a alma foi ficando um pouco em cada jogo de cartas, em cada microfone, em cada clamor sem palco, em cada sala com rostinhos diversos.

A poesia é diferente agora e não só porque é em prosa. A poesia fica um pouco inscrita em tudo o que foi formando isso que a gente acostumou a chamar de "a gente". Algumas palavras continuam sendo as mesmas, não dá para substituir o assunto amor que tanto povoada os nossos versos, mas como a gente construiu amores ao longo desse caminho cheio de pedras que a gente também já sabia que iria encontrar - guiados por um outro poema.

Fazia tempo que eu não escrevia um poema e fazia tempo que eu não via que a vida ainda se dá na mesma medida. Ou que ela continua tão sem parâmetros quanto antes. Continua tão passional quanto. 

Fico me perdendo em uma ou outra estrofe que poderia ter sido minha, fico ouvindo aquelas frases que a gente gritava no escuro - o metafórico em que a gente ainda se encontra e o literal. O peito arde do mesmo jeito, os olhos ainda se esforçam tentando divisar qualquer coisa, tatear qualquer caminho.

E de repente eu vejo que aquela coisa morna e ingênua ainda está aqui.

("Hoje eu acordei com medo, mas não chorei nem reclamei abrigo")

Brinde



O sangue sempre escorre mais
Os fluidos misturam-se no espaço
mais espesso do silêncio

Alguém quebra
era vidro
copo
corpo
coisa
caso

Era dissílabo
de acentuação confusa
e atenuação precisa

Pedras de gelo
foram feitas para derreter
e aguar o líquido
que a gente bebe,
lambuza
e deixa evaporar

terça-feira, março 20, 2012

Espelhos paralelos

O cigarro aceso há alguns minutos se desmantela em filtro e apaga sozinho na forma velha de empada que faz as vias de cinzeiro para quem não fuma. A música repetida infinitas vezes deixa de ser composição da cena e revela traços da obsessão que não sabe desenhar nem lembra mais como se escreve. Algumas atividades burocráticas, alguns fundamentos ainda por fundar e já tão desgastados esperam em papéis virtuais ou calhamaços cujo peso oscila entre o peso metafórico e o literal.

Ninguém me vê fumando o filtro que é mesmo cena. Ninguém me vê usando os acordes que desconheço, cantarolando as melodias-fendas, pontiagudas, que abrem cortina para que verta em vertigem o sangue represado, contagoteado, que fica aqui por tanto tempo e, de quando em vez, não se aguenta e transborda no mais do mesmo.

Falta uma compreensão mais plena. Autoconhecimento. Esboço de entendimento de si. Falta que a crítica saia dessas mesmas palavras cifradas e toma mais coragem do que goles de erudição enrustida. Falta arrumar as roupas, o cabelo, falta lavrar, talhar com cuidado e respeito pelas próprias vontades a tal da alma. A questão é que não é por saber que se esmurra uma faca cega que não vai haver uma esperança de sair um machucadinho que seja.

A receita é falha e os ingredientes tão diferentes que nem valeria a pena começar a pensar em seguir recomendação nenhuma, mas a disposição que tem que ter para fazer algo novo e debater discutir legitimar etc. etc. etc. faz com que a gente perca um tipo de crença em si mesmo necessária para parar de ficar para sempre procurando do outro lado do vidro um reflexo inexistente enquanto assumo rompantes meio vampirescos de sugar-me ao fundo do raso.
Quando parti deixei muito mais do que levei comigo. As lembranças todas ficaram e junto o bilhete que poderia ter vindo com minhas poucas malas. Os objetos cheios daquele pó que se acumula todos os dias sobre as emoções ficaram espalhados pelos mesmos incontáveis cantos que eu deixo para você reorganizar. Deixo um bilhete e levo a minha roupa do corpo porque é preciso levar alguma, mas não duvide que bebo estas também com a primeira garrafa e depois volto despido para cobrir meu sexo com páginas rasgadas daqueles livros que te dei e você nunca leu.

domingo, março 18, 2012

Saga (Filipe Catto)


Andei depressa para não rever meus passos
Por uma noite tão fugaz que eu nem senti
Tão lancinante, que ao olhar pra trás agora
Só me restam devaneios do que um dia eu vivi

Se eu soubesse que o amor é coisa aguda
Que tão brutal percorre início, meio e fim
Destrincha a alma, corta fundo na espinha
Inebria a garganta, fere a quem quiser ferir

Enquanto andava, maldizendo a poesia
Eu contei a história minha pr´uma noite que rompeu
Virou do avesso, e ao chegar a luz do dia
Tropecei em mais um verso sobre o que o tempo esqueceu

E nessa Saga venho com pedras e brasa
Venho com força, mas sem nunca me esquecer
Que era fácil se perder por entre sonhos
E deixar o coração sangrando até enlouquecer

E era de gozo, uma mentira, uma bobagem
Senti meu peito, atingido, se inflamar
E fui gostando do sabor daquela coisa
Viciando em cada verso que o amor veio trovar

Mas, de repente, uma farpa meio intrusa
Veio cegar minha emoção de suspirar
Se eu soubesse que o amor é coisa assim
Não pegava, não bebia, não deixava embebedar

E agora andando, encharcado de estrelas
Eu cantei a noite inteira pro meu peito sossegar
Me fiz tão forte quanto o escuro do infinito
E tão frágil quanto o brilho da manhã que eu vi chegar

E nessa Saga venho com pedras e brasa
Venho sorrindo, mas sem nunca me esquecer
Que era fácil se perder por entre sonhos
E deixar o coração sangrando até enlouquecer



quarta-feira, março 14, 2012

Outro lugar - Milton Nascimento


Cê sabe que as canções são todas feitas pra você
E vivo porque acredito nesse nosso doido amor
Não vê que tá errado, tá errado me querer quando convém
E se eu não tô enganado acho que você me ama também
O dia amanheceu chovendo e a saudade me contém
O céu já tá estrelado e tá cansado de zelar pelo meu bem
Vem logo que esse trem já tá na hora, tá na hora de partir
E eu já tô molhado, tô molhado de esperar você aqui
Amor eu gosto tanto, eu amo, amo tanto o seu olhar
Andei por esse mundo louco, doido, solto com sede de amar
Igual a um beija-flor, que beija-flor,
De flor em flor eu quis beijar
Por isso não demora que a história passa e pode me levar
E eu não quero ir, não posso ir pra lado algum
Enquanto não voltar
Não quero que isso aqui dentro de mim
Vá embora e tome outro lugar
Talvez a vida mude e nossa estrada pode se cruzar
Amor, meu grande amor, estou sentindo
Que está chegando a hora de dormir.

quinta-feira, março 08, 2012

Mais um dia

Li muitos textos muito bons para pensar o machismo nosso de cada dia. Que pensemos hoje e sempre. Que repensemos os papéis dos gêneros em nossa sociedade. Fiquei meio sem saber o que escrever depois de ler A metáfora perfeita e 08 de março, dia de você repensar seu machismo, fica a recomendação e a tentativa de conto abaixo:

Acordar cedo como de costume. Levantar apressada disfarçando o inchaço dos olhos para o caso de o marido despertar com o barulho de seus passos. Prender o cabelo em um rabo de cavalo para espantar a aparência de quem acabou de acordar. Ir até a cozinha antes mesmo de escovar os dentes. Água para ferver, pó para passar o café, pães na torradeira para o marido, cereais para o do meio, iogurte para o caçula. Antes que tudo estivesse no lugar, as crianças chegam como pequenas tempestades pedindo coisas. O marido com um beijo burocrático, gritaria, correria, leite no chão. Pano e desinfetante no chão. Banho no mais novo, grito com o do meio para que vá logo tomar banho, nó na gravata do marido, uniformes e mochilas dos meninos, lancheiras, tchau com outro beijo burocrático no marido.

Ponto de ônibus cheio de manhã. Olhar tarado de um babaca próximo. Crianças na frente na hora de subir no ônibus. Um homem que dá a vez simulando gentileza e olha para a bunda dela quando sobe no veículo. Ônibus ainda mais lotado que o ponto. Equilibrar crianças, segurar mochilas, evitar contatos físicos indesejados. Descer do ônibus, tentar atravessar no sinal fechado, quase ser atropelada e receber um "quer morrer, vadia?". Dar tchau para as crianças, atravessar a rua de volta, pegar outro ônibus lotado, chegar atrasada no trabalho, receber um olhar de reprovação do chefe, perceber aquele aumento desejado e necessário cada vez mais longe, ligar o computador, acessar o email, receber várias mensagens com flores, imagens maternais e etc. irritantes. Receber um convite do chefe para almoçar, receber uma cantada do chefe, trabalhar o dia todo, ficar exausta, buscar as crianças no colégio, chegar em casa, fazer comida, colocar a roupa para lavar, passar o uniforme das crianças para o dia seguinte, tomar banho, receber uma lingerie do marido como presente e deitar antes que ele queira que ela vista.

Essa é a primeira imagem que aparece no google para a palavra "mulher".

quarta-feira, março 07, 2012

Insatisfação de longa data


Reproduzo abaixo uma reportagem que nos ajuda a pensar que manifestação e vandalismo não são sinônimos.

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Aumento da passagem das barcas - que fazem trajeto Rio-Niterói - provoca indignação e mobiliza aparato de segurança, mas os problemas nos serviços e reação da população ao aumento das tarifas são muito antigos

Alexandre Leitão e Alice Melo

O protesto de clientes da Barcas S.A. – responsável pelo traslado aquático entre Niterói e Rio de Janeiro –, que aconteceu na manhã de hoje, supreendeu não só pela mobilização dos passageiros, mas pela tática adotada para conter a manifestação: um forte aparato de segurança, com direito a helicóptero, e o adiamento do aumento da passagem, que aconteceria hoje, para o próximo sábado. A tarifa passará de R$ 2,80 para R$ 4,50 para o usuário que não tem Bilhete Único, ou R$ 3,10 para aqueles cadastrados no programa. O aumento de mais de 60% é definitivo e foi autorizado em dezembro passado pela Alerj, pouco depois de um acidente na Baía de Guanabara com uma embarcação ter deixado mais de sessenta pessoas feridas. Os passageiros, revoltados, começaram a se mobilizar pela internet, e um professor chegou a ser intimado por publicar um vídeo no YouTube convocando a população.
A companhia de transportes alega que o reajuste no preço vem para ajudar a saldar uma dívida contraída com o Estado desde o fim da década de 1990. Segundo a Barcas SA, o transporte de passageiros a R$ 2,80 estava gerando prejuízos. E este prejuízo poderia influir no bom funcionamento dos serviços – que vem deixando a população cada vez mais insatisfeita: filas enormes e superlotação das embarcações já fazem parte do dia a dia do usuário.
“Acho que foi na quinta-feira antes do carnaval que peguei coisa de uma hora na fila, aqui na Praça XV”, conta Amanda Souza, moradora de Niterói que precisa ir todos os dias ao Centro do Rio para trabalhar. “Não dava para ver nem o fim. Às vezes chega na Rua da Assembleia. Fora que a gente fica como um gado lá dentro. Vinte minutos apertados na frente do vidro, depois mais vinte antes do outro portão, até entrar naquela carcaça que demora quarenta minutos para fazer a travessia”, conta. A Barcas S.A. e a Agência de Transportes do Rio de Janeiro (Agetransp) - empresa responsável pela fiscalização dos serviços transportes do estado - foram procuradas pela Revista de História, mas não se manifestaram a respeito.
Se o aumento nas passagens vai solucionar os problemas históricos nas barcas, só o tempo dirá. O que se sabe é que não é de hoje que as tarifas dos transportes urbanos sofrem acréscimos sem que a população seja consultada; ou que passageiros se envolvam em protestos e revoltas contra o governo ou entidades privadas que administram os serviços, por conta do mal funcionamento dos veículos. Essa história é quase tão antiga quanto a velha capital da República.
Outras revoltas
Na década de 1950, por exemplo, a União Nacional dos Estudantes, que vivia em um constante troca-troca entre direções lideradas pela juventude do PCB e da UDN lacerdista, encampou uma massiva manifestação contra o aumento das tarifas dos bondes no Rio de Janeiro. Contando com o apoio de vários sindicatos operários e a clara simpatia da população carioca, a revolta marcou o mês de maio, e forçou o presidente Juscelino Kubitscheck a convocar o Marechal Henrique Teixeira Lott para suprimi-la. O “marechal da Legalidade” - como era conhecido o oficial após sua participação decisiva na defesa da posse de Juscelino em 1955 - invadiu o Rio de Janeiro com tropas do I Exército e cercou o prédio da UNE. A tensão só foi acalmada quando JK chamou o presidente da entidade, Carlos Veloso de Oliveira, ao seu gabinete para uma negociação. Resultado: um morto.

Barcas no centro da confusão
Em 1959, o mesmo iria se repetir, só que em Niterói. O serviço de barcas, na época, era organizado pelo Grupo Carreteiro, responsável pelo aumento sucessivo da tarifa. Naquela época ainda não havia a ponte Artur da Costa e Silva, mais conhecida como Rio-Niterói, o que tornava o traslado em barcas o principal meio de transporte entre uma cidade e outra.  No dia 21 de maio daquele ano, o Sindicato dos Marítimos e Operários Navais declarou greve, inativando boa parte da frota aquaviária. Na manhã seguinte, quando fuzileiros navais tentavam organizar a multidão de passageiros em fila na mesma praça Araribóia, um dos guardas atirou uma rajada de metralhadora para o alto. Foi o estopim que detonou a frustração dos populares com o serviço.
Imediatamente, os usuários invadiram a estação e atearam fogo tanto na construção quanto nas embarcações atracadas naquele porto. Alguém teria dito, no meio da confusão: “Vamos queimar a casa desses ladrões!”. E os manifestantes rumaram aos gritos ao bairro Fonseca, onde ficava a mansão da família Carreteiro. As propriedades da família foram destruídas pelo fogo e, no dia seguinte, um bilhete foi encontrado escrito na parede: “Aqui jaz a fortuna do Grupo Carreteiro, acumuladas com o sacrifício do povo”. Jornais locais chegaram a descrever Niterói como uma “Bastilha” e o número de mortos surpreendeu: seis no total, com mais de cem pessoas feridas. O governo estatizou o serviço, que só voltaria a ser privatizado nos anos 90.    
Ônibus em chamas
O principal meio de transporte público urbano do Rio de Janeiro também não poderia ficar fora dos atos contra aumento de tarifas ou problemas nos serviços. Os ônibus, desde seu aparecimento nas ruas e avenidas do estado, são os grandes protagonistas quando se fala em problemas no setor. Em 1987, por exemplo, quando a Fetranspor anunciou que haveria aumento na passagem dos coletivos - com Moreira Franco no governo estadual e Saturnino Braga na prefeitura do Rio de Janeiro -, revoltosos se concentraram na Cinelândia e acabaram entrando em confronto com a polícia. A cena teve direito a bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes e pedradas. Não deixando a dever nada às manifestações de maio de 1968.


Protesto no Império
Mas todas estas revoltas populares sempre deverão algo à virada de ano de 1879/1880, quando abolicionistas, republicanos e, principalmente, usuários do serviço de bondes da Corte Imperial, reuniram-se para protestar contra a lei que impunha um imposto sobre o preço das passagens, aprovada pela Assembléia Geral do Império, em outubro. A revolta localizada contra o aumento somou-se às causas e ideais que mais abalariam a década de 1880. Lopes Trovão, uma das mais renomadas lideranças do movimento republicano no Rio, discursou em uma manifestação marcada para o dia 28 de dezembro, que ocupou o campo de São Cristóvão, próximo ao Palácio Imperial. Os manifestantes tencionavam entregar um abaixo-assinado contra o imposto a Dom Pedro II, e foram impedidos em sua marcha por um grande contingente policial liderado pelo chefe de polícia Feliz José da Costa e Silva.
Charge de Angelo Agostini/ Acervo da FBN
Charge de Angelo Agostini/ Acervo da FBN

O monarca comunicou depois a Trovão que receberia uma comissão para tratar do assunto, respondendo que o “povo não voltava, uma vez que lhe fecharam da primeira vez as portas do palácio”. No dia 1° de janeiro, nova manifestação foi marcada, agora no Largo do Paço, região central da cidade, com destino ao Largo de São Francisco. A reivindicação não era mais dirigida ao governo, mas ao próprio povo, pedindo simplesmente que este não obedecesse à determinação de aumento. No cruzamento entre as ruas Uruguaiana e Ouvidor um quebra-quebra generalizado irrompeu, com tiros disparados, trilhos arrancados e ataques aos condutores. Alguns dos burros que puxavam os bondes acabaram esfaqueados.
A rebelião, nomeada depois de Revolta do Vintém, terminou com três mortos e algo em torno de 15 feridos, sendo controlada com a chegada de 600 tropas do Exército. Marcante para a história do Segundo Reinado, seus efeitos concretos foram sentidos alguns meses depois, quando em abril os diretores da companhia de bondes reivindicaram junto ao governo a supressão do imposto sobre a tarifa, que foi definitivamente extinto em julho de 1880.



quinta-feira, março 01, 2012

O que é isso, Fernando?

O começo do eterno retorno faz com que repita sem pensar um mesmo trajeto de anos antes. A sensação de um passado longínquo corresponde mais à falta de reais distâncias a percorrer do que a embaçamentos na memória fraca. Sempre foi boa - e, afinal, foi mesmo ontem, não haveria razão para. Fato é que o tal do novo tão temido, desnorteador, desestabilizador, que há não muito cegava, provocava suores, insônias, pesadelos e angústias. Estas últimas também mais por hábito, dependência, vício que realmente por reação a acontecimentos reais.

Nenhum acontecimento real. Nenhuma novidade maior que a de pegar de volta os mesmos caminhos, voltar aos mesmos lugares, olhar nos mesmos rostos. De um lado duros, cheios de obstáculos para perpetrar. De outro ansiosos para que eu traga-lhes também um caminho, alguma coisa perto de uma certeza, uma forma próxima de concreta. Nenhum dos dois lados sabe o quanto não posso oferecer nada disso. Não sabem que trago as mesmas perguntas, os mesmos desejos de achar respostas. Talvez para um dos lados eu seja ainda muito ingenuamente sonhadora e para o outro demasiado incrédulo, no sentido de uma desesperança no que concerne a achar as respostas.

O que não sabem, ninguém sabe. É que todos fazem parte de uma mesma procura cíclica, cansativa e estimulante. Como uma escada, um medo, uma ponte ou um passo de dança. Sempre sem interrupção.