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quarta-feira, maio 30, 2012

O aprendizado difícil.

O aprendizado é sempre difícil. Há que aprender a juntar-se em partículas extremamente distintas. Misturas nada homogêneas que a gente vai formulando, mudando temperaturas, pressão e as condições normais se fazem até a hora em que fica imprescindível desfazer.

Aí? Aí tem que aprender a separar cada detalhe. Tem que saber ser nas coisas todas mais improváveis. Tem que acordar e abrir os dois olhos sozinha mesmo que a metonímia pareça dissimular a solidão. Há que esticar sem limites os braços sabendo que eles só esbarrarão em felinos ou paredes geladas. (O amor se desfaz um pouco cada vez que você não está perto e depois se refaz em cada pedaço de presença sua). Levantar o peso do corpo ainda quente, mas cuja temperatura acabo desconhecendo por não ter no seu toque um a partir do que medir. Os amigos mais frios recomendarão um termômetro sem saber que não é essa a febre, que não há febre nenhuma. Os passos na longa jornada até o chuveiro não receberão os bons agouros de teu beijo de bom dia, mas não faz diferença porque eu não sei se a palavra agouro pode ser usada para uma coisa boa. Depois de me expulsar de mim, eu posso até achar bom que a temperatura mude, a água um pouco mais fria promete alterar todas e começar um dia mais fresco.

O mais difícil promete vir a seguir, pois a água eu não saberia dizer se ferve sem ti. E aos poucos descubro que é tudo uma questão de a quantos graus se consegue chegar ou o quanto a ebulição consegue transpor filtros, o quanto chega espessa do outro lado. Não saberia dizer se precisaria de leite no meu café, talvez meu estômago procurasse a dor, como costumo fazer quando você não está.

Eu terei só um espelho que nem vai saber me dizer sobre as descombinações das cores ou da liberdade dos fios que você sempre preferiu assim, meticulosamente despenteados.

Eu vou encarar o vento e o ar das ruas e vou me ver ao longe andando sozinha e capaz. O cigarro que você reprova em uma das mãos. Segredos e cadernos possivelmente na outra. Você não vai ver quando eu deixar passar a hora de comer, não vai saber quando eu me sentir feliz de repente por uma música, uma imagem ou qualquer dessas coisas bobas que cruza os nossos descaminhos ao longo dos dias.

Mas e quando essas alegrias efêmeras se dissolverem numa batida de ônibus ou num engarrafamento? Quando a nossa casa ameaçar me engolir? Quando você souber que eu não durmo, não respiro, não acordo, não levanto e nada disso acontece. Que há apenas monstros voadores, coloridos e feras, felinos e dragões que esperam junto comigo a sua chegada. Que só a sua chegada ilumina, traz flores amarelas e uma beleza que não existe lá fora nem em lugar nenhum aqui dentro.

Papilas gustativas
Eu mentalizo mantras enquanto me mato e me arruíno no abismo controverso em que parecem não caber duas felicidades que por muito tempo pareceram ser uma. Você já ganhou o mundo e eu tento pegar caquinhos de vidro cortante para ver se construo o meu. Não quero olhar o seu de cara cheia nem emitir julgamentos caso você decida girar na roda de repente. Se a onda for boa, se não der náusea, torço para que seja bom.

Do meu canto, eu vou desligar o computador, tomar banho, deitar os olhos no teto e ver se faço amizade com os monstros que moram comigo. Eu sei que não é doce, mas é bom variar os sabores, explorar as papilas gustativas. A gente já provou tantos gostos que não imaginou que tivessem esses tantos outros aqui do outro lado. Não dava para exigir que tudo fosse jogado fora e seguíssemos apenas retas paralelas, os caminhos descrevem parábolas, curvas distintas e sempre se encontram, se cruzam, se entrelaçam. E tudo o que se aprende, constrói, experimenta, experiencia, todas as sensações são tipos de prazer.

terça-feira, maio 29, 2012

Não há possibilidade de fazer nada enquanto não expurgar tudo isto. Não há meios de continuar a agir normalmente, acordar, tomar banho, café e andar na rua com essas palavras grandes, indefinidas, indecifráveis atravessadas. As palavras que deveriam ser imagens não abandonam os ciclos, círculos, pontos e espirais que se desenham e redesenham nas vertigens antigas que eu tento vender como novidades desencaixadas nos pronomes impessoais e tortos.

Celinda Ojeda


A lâmina atravessa o feltro vermelho que não só não sangra, como expurga espuma branca da forma mais sutil. Os movimentos musculares que rasgam as superfícies querendo penetrar, mergulhar fundo, destruir, ver jorrando o forro, desmontando os planos de conforto, os movimentos querem rasgar peles, espremer carnes, escorrer sangues que pingam incomoda e vagarosamente. Isto não é uma fala de teatro, não é uma cena de teatro, não é um roteiro de cinema, não é uma imagem para além do texto. É texto. É só texto. É sempre apenas texto. Emoção falseada, engodo-explosão. A vida não é feita de palavras. As palavras podem vivificar um pouco em vozes, sussurros, choros, desesperos.

É um desespero leve, alternado com essa tranquilidade grande. É um desespero atormentado por formigas, dentes, alimentos estragados, bolores. É um desespero que se refugia em filmes porque os livros são muito densos ou porque a atenção anda muito dispersa e perdida em tensões de uma era em que se dá nomes de gerações ao que antes era apenas conhecido por preguiça. Pecado capital que se fosse para escolher, não seria o escolhido. Mas a gente aprende que não somos só escolhas, que existem as tais partes de nós mesmos que não são possíveis de serem seguidas, acompanhadas, esmiuçadas. A compreensão impossível, a tarefa árdua que não deve valer a pena. O tal reflexo desprezível, o que não se quer ver de si mesmo, os atos mais falhos, os inconscientes mais corruptíveis.

O empenho intelectual vai mais fácil pelo ralo, escorre no chuveiro envolto em sangue, ferrugem e suco gástrico que deveria ser a metáfora do dia, mas foi seu prato de ontem que eu peguei frio e azedo para mastigar. Fica a mesma massa incompreensível, intocável e previsível. Massa disforme e áspera em que a gente afunda sulcos, constrói peles, faz brotar lágrimas artificiais, porque quando é verdade a dor é o grito que se escuta de longe, perdido no meio da tarde.

A dor ganha, perde, faz e desfaz contornos, curvas de seios, curvas de músculos, veias vísiveis sob a pele. A gente vai modelando a dor que nunca é mais que invenção. Limites que a gente mesmo testa porque sabe que a destruição só é possível uma vez e depois tudo é reinvenção. Depois que a gente já sabe como remonta, não tem a mesma graça o peteleco inicial do efeito dominó. Depois que a gente já sabe como faz para escalar pedras, não tem o mesmo impacto o salto dos altos abismos. Depois que a gente já conhece o nosso próprio antes, a gente tem a ilusão besta de que já se conhece, que já sabe como vai reagir. Acha que tem resposta na língua, acha que a conversa de frase-feita funciona, acha que há jeito, que tem peito, que encara, resiste e que o calor que vai subindo pelo rosto pode ser controlado antes de virar lágrima.

sexta-feira, maio 25, 2012

Palco

Para se ler ao som de Quereres.
Para Thiago Ortiz.

Não é só porque eu sei que você vai ler que eu escrevo. Escrevo porque eu vivo cenas que eu gostaria de colocar em falas da sua boca, porque eu acho que ficariam mais bonitas na sua língua. Os meus silêncios, os meus gritos, as minhas insanidades de desespero ficariam melhor no teu corpo, no teu timbre e isso, ah, isso já faz de ti um ator.

Escrevo porque você é a única pessoa do mundo que entenderia a tranquilidade da frase "Está tudo bem, ela não foi ao cinema, foi só ao motel". Talvez você também seja a única pessoa que entenda porque é melhor estar no motel, é melhor voltar pra casa, é melhor rasgar cadeiras, gritar insanidades de quando já não se tem mesmo voz.

Além do teu abraço que foi mesmo a única coisa que eu queria. Além do estranhamento que é te ver tão pouco e saber o quanto você toca a minha alma mesmo virtualmente nesse mundo virtual idiota. Além dos meus problemas de eterna adolescente desescontrada, além dos teus problemas de um artista preso num corpo e numa vida pequenas demais para a grandeza que você é. Além de você estar aqui mesmo sem estar aqui para segurar minha mão e dizer que vale a pena sofrer ou que não vale.

Além de tudo o que é transcendental, além de tudo que é virtual, o que é real, o que é insosso, o que sofrido, o que é trabalho, o que é desemprego, o que é mãe, o que é casa, o que é mãe, o que é relacionamento, o que é término, começo, fim, meio. Você é a pessoa que partilha tudo isso de longe, você é a pessoa que eu quero ver num palco e para isso, juro, eu ponho as palavras na sua boca porque eu sei que você vai saber quando elas devem ser cuspidas. Façamos!

quinta-feira, maio 24, 2012

Uma pessoa só pode ser destruída uma vez. Depois ela destrói. Depois ela cria imunidades para os vírus mais pestilentos. Depois ela começa a conhecer a destruição a fundo. E vê e mostra que  fundo do poço é um lugar frio.

quarta-feira, maio 23, 2012

Peintre

 Uma conciliação necessária e estranha. O desprezo do indescritível se mostra em imagens, em profanações muito mais cortantes do que dramas mal contados. Uma questão de abrir-se, abrir espaço para o nu absoluto. Há quem tenha escolhido viver, contar, cortar a garganta e colocar na mesa o sangue, as linfas, obrigar os outros a viver com o desconforto que quiseram negar.

A arte pode ser pretexto, mas também pode ser o único meio de expurgar a dor que o ópio não resolve. Andar nas ruas pode ser uma maneira de filtrar o espanto, deixar que apenas o horror dos outros transmita o reflexo que não se quer de espelhos e fotografias caladas de pavor.
A ousadia de quem agoniza em praça pública, de quem vive exibindo a morte pulsante, quente, sorridente sem que ninguém tenha pedido para ver, a repulsa é maior, mas há armas. Há armas. Há armas. E há vida para além de histórias a serem contadas. Não que estas...

"Era um amor de uma tensão extraordinária que passava entre aqueles dois olhares, daquele que se concentrava pintando, e daquele que se concentrava sendo pintado. Era uma atividade física que teria tornado irrisória a atividade erótica, que ela compreendia sem exprimir, nem é preciso dizer. Mas a mesma coisa poderia ser contada de maneira bem diferente, poderia tomar dez páginas assim como algumas linhas luminosas que conseguiriam tudo relatar mas que eu não achei. É o acaso e o desespero da escritura que assim coagularam esse episódio, até que eu o rasgue e recomece, sem cessar, sempre o mesmo, até a loucura, até o silêncio" (GUIBERT, Hervé. O homem do chapéu vermelho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. p. 80.)

domingo, maio 13, 2012

Je vais prendre ta douleur, Xuxu!

"Mãe é um papel social construído" é o que eu deveria te dizer hoje. E que algumas pessoas não aprenderam direito, não desenharam direito o que deveria ser ou aprenderam de outra forma. Mas não é isso o que vou te dizer hoje e agora.

O que eu quero te dizer é que outros papéis a gente também constrói diariamente. Construiu durante anos. Quando você achava que eu era sua boneca, quando me protegia do escuro ou das brigas constantes do conflito difícil que é a vida. Você me vestiu e me deu almoço tantas e tantas vezes. Lembra quando o tal papel faltava? Lembra quando eu chorava pedindo aquilo que eu achava que só podia ser personificado numa pessoa, mas era você que sempre estava ali antes das cinco da tarde. Era você que me abraçava e me dizia que eu não estava sozinha ou, às vezes raivosa, me dizia que não adiantava, que se eu queria o que faltava, você me traria em forma de autoridade.

A gente criava mundos, histórias, bonecas. A gente pintava cores, mudava moveis, transformava mobília em brinquedos. Hoje eu gosto de dizer pras pessoas que nós éramos uma quadrilha, mas a verdade é que nós éramos um mundo só nosso que se passava antes das cinco da tarde, um mundo regado a biscoito recheado hipopó comprado no Mundial, a cream cracker com misturas nojentas da Nani, a pão de queijo esquisito que a gente moldava também em brinquedo, a programas de tv, a brincadeiras barulhentas no corredor do prédio, a manhãs e tardes intermináveis em que a gente não sabia e nem podia saber, mas estava se formando. A gente fez e viveu um mundo só nosso.

Lembra quando você era a minha referência na escola? Eu lembro de quando você me ensinou a fazer conta de nariz e boquinha e as minhas divisões precoces me faziam sentir a pessoa mais inteligente do mundo. Você me levava pra escola e se eu de repente ficasse desesperada (ora, eu sempre senti um desespero tão grande de estar no mundo) você estava ali perto, a poucas salas de distância para me socorrer. Se alguém me batesse, brigasse comigo, se eu tirasse nota baixa ou achasse um trabalho impossível, era para você que eu pedia socorro. Por muito tempo eu quis ser como você. Eu criava antagonismos na nossa tríade e você era o meu modelo de pessoa bonita - e olha que você era meio gordinha, tinha uma sobrancelha esquisita, mas quando colocava aquele uniforme de escola importante, eu achava que aquilo era tudo o que uma criança podia querer na vida. Aí, um dia eu cheguei mais perto e passei a te admirar mais ainda porque aquele mundo novo era tão mais complexo, era tão mais difícil, mas se você tinha conseguido, eu também poderia.

E das brigas, você lembra? Não é fácil fazer três mulheres trancadas dentro de uma mesma forma, ou de uma mesma caixa. Roupas, frases, canais de TV, tudo virava faísca e toda faísca virava explosão intensa. E aí, algumas vezes você já não era aquela que sempre me defendia de tudo, nem eu era mais a sua bonequinha. O difícil de crescer foi que fomos nos tornando pessoas diferentes do que esperávamos uma da outra. E aceitar o outro é sempre difícil. E quando a gente vê que o outro ainda está se fazendo, a gente tem a ilusão de que pode interferir, fazer a nosso gosto, quando na verdade, não adianta, cada uma é de um jeito. Os conflitos também nos fizeram, a alteridade que até hoje é tão latente foi o que disse a cada uma de nós o quanto éramos completamente diferentes.

Cada uma a sua forma e a seu tempo, nos aceitamos, nos conhecemos e transformamos aquela relação que parecia ser uma obrigação de sangue numa saudade constante. Ter a nossa vida da adultas dá uma saudade de partilhar os momentos bobos, de comentar um programa de tv, de pedir pra você desenhar uma boneca de papel pra mim, de brincar de secretária. Ao mesmo tempo, dá um orgulho gigante de ver no espelho essas três mulheres lindas nas quais nos transformamos. Hoje eu acho maravilindo (como diziam os bebês daquele desenho "Os anjinhos", lembra?) olhar no espelho e ver as nossas tais diferenças, acho bonito que tenhamos conseguido.

Família também é uma construção social, cultural, histórica - para poder fazer valer a minha não profissão. Mas, caralho, família é uma construção afetiva. E afeto é uma coisa que a gente construiu e desconstruiu de mil formas ao longo de nossas vidas inteiras. E constrói diferente hoje. Constrói lindo, em três pilares que não são tripés, porque estes impedem que se ande. Somos três faces de um polígono impossível, mas que se equilibram e se tornam possíveis, mesmo com os rumos diferentes, mesmo agora que somos essas três mulheres completamente diferentes.

Fico pensando como seria se alguém chegasse pr'aquelas três meninas e dissesse no que elas se transformariam. Se dissessem pr'aquelas três adolescentes que chegaria um dia em que elas se amariam tanto que só teriam vontade de se abraçar no colo que é um abraço a três e dizer em silêncio que elas conhecem segredos que ninguém conhece, que elas estão conectadas por algo que não tem nada a ver com sangue, nada a ver com pai, mãe, casa ou datas comemorativas. Amor é uma construção que não se explica mas que se vive ao longo de uma vida inteira.

E quando eu digo vida inteira, moça, eu quero dizer todo o tempo que temos pela frente.

Sabe esse dia idiota de hoje? Sabe essa data construção do capitalismo? Sabe esse papel construção do moralismo? Eu quero te dizer que você é algo completamente diferente disso, mas você sempre foi minha irmã-mãe. E eu estou sempre aqui pra te abraçar e te proteger dos monstros e da escuridão quando eles cruzarem o seu caminho.

segunda-feira, maio 07, 2012

Porque há barulho ou público, porque há tesão ou oportunidade. Porque há vida e perguntas, perguntas sempre há, mesmo que a gente finja que são algo próximo de respostas. Há também músicas e barulhos que a gente faz com o corpo e sabe que não pode transformar em palavras. Há poemas, há versos leminskianos que a gente nunca decorou. Há versos n'autre langue que a gente não vai decorar porque a pronúncia, você sabe. Há dores e vontades.

Pedaços que a gente consegue pegar. Encostar com os dedos e saber que existem por conta de um dos sentidos cujo sentido a gente não só desconhece como tenta aproveitar pr'essa ambiguidade besta. A gente se aproveita do fato de que a vida passa. A gente faz desfeita só porque os fatos são poucos e nunca há mesmo muito em que se agarrar.

A gente faz versos. Relê versos de um passado já tão distante e que se queria presente a fim de que fosse uma prova de vida. A gente queria saber ainda usar palavras grandes como vida. A gente queria saber quem é essa tal gente que indetermina nossos sujeitos, que pluraliza nossas falas tão solitárias quanto vermes classificados e inúteis. Feito doenças ainda não descobertas. Livros não lidos. Frases em suspenso.

domingo, maio 06, 2012

Ta douleur (Camille Dalmais)

Lève toi c'est décidé
Laisse-moi te remplacer
Je vais prendre ta douleur

Doucement sans faire de bruit
Comme on réveille la pluie
Je vais prendre ta douleur

Elle lutte elle se débat
Mais ne résistera pas
Je vais bloquer l'ascenseur...
Saboter l'interrupteur

Mais c'est qui cette incrustée
Cet orage avant l'été
Sale chipie de petite soeur ?

Je vais tout lui confisquer
Ses fléchettes et son sifflet
Je vais lui donner la fessée...
La virer de la récrée

Mais c'est qui cette héritière
Qui se baigne qui se terre
Dans l'eau tiède de tes reins ?

Je vais la priver de dessert
Lui faire mordre la poussière
De tous ceux qui n'ont plus rien...
De tous ceux qui n'ont plus faim

Dites moi que fout la science
A quand ce pont entre nos panses ?
Si tu as mal là où t'as peur
Tu n'as pas mal là où je pense !

Qu'est-ce qu´elle veut cette conasse
Le beurre ou l'argent du beurre
Que tu vives ou que tu meurs ?

Faut qu'elle crève de bonheur
Ou qu'elle change de godasses
Faut qu'elle croule sous les fleurs
Change de couleur...
Je vais jouer au docteur

Dites moi que fout la science
A quand ce pont entre nos panses ?
Si tu as mal là où t'as peur
Tu n'as pas mal là où je chante !

terça-feira, maio 01, 2012

Ainda sem

Para se ler ao som de O velho e o moço (Los Hermanos)

O mais novo de mim mesma é muito antigo.



São amontoados de meia dúzia de frases de livros mal lidos, outros apenas comprados que enfeitam estantes inexistentes, se espalham por mesas inutilizáveis e por pedaços de chão manchado por tintas desconhecidas cujas histórias me são bem mais atraentes do que as das capas nunca abertas.

O egoísmo é tanto que ficou gravado na pele tudo o que não é para fazer. A preocupação foi tanta que ficou tudo inacabado, desinteressante. Sempre me procurando, me procurando, me procurando em várias coisas já prontas e mal-feitas, por isso sempre vi um pouco de espelho do meu rabisco. São só rascunhos manchados, desabafos de coisa nenhuma e agora que precisava de algo pronto, ninguém fez. Todas as histórias boas estão fechadas nas estantes, no chão, nas livrarias. Não adiantou nada cortar o cabelo e decorar meia dúzia de contos se agora eles não dão conta - com o perdão do trocadilho besta - da profundidade necessária.

Repetir as mesmas frases, não ter aprendido nenhuma palavra, não ter escrito nenhuma história e não ter aprendido as formas corretas de usar o termo mesmo fazem perceber quanto tempo foi gasto à toa. Quanta lágrima desperdiçada, o choro inútil de não ter motivo para chorar.

O drama nasceu comigo. A intriga ficou faltando. Eu perdi a literatura em artigos pouco produtivos e também mal-lidos, já que nem a escrita mais mercadológica me é eficiente. Farsa intelectual. Metáfora comprada de quem roda na roda e roda fodidamente por não saber sequer dar nomes aos próprios bois. Por ter perdido a mão na hora de ser mais vaca, mais filha da puta.  São correntes historiográficas tão mal aprendidas quanto os fatos colocáveis em linha do tempo. Não dá para subverter o ensino quando não se sabe verter uma lágrima que valha a pena. Quando não se sabe a teoria clássica que pode ser desconstruída, quando uma preguiça enorme de aprender é o que mais tem espaço.

O mais novo de mim mesma é muito sem graça. Ele tem roupas novas. Ela agora mandou dizer que fuma só para poder simultaneamente esquecer mais um verso e eliminar uma tarefa do eterno dia seguinte. Ela agora diz que conhece o amor livre quando ainda repete o substantivo no singular e desconhece as adjetivações necessárias para se dar prazer. O gozo é pouco quando o dia seguinte pede o pragmatismo de um novelo de náilon do qual o felino mais idiota se desvencilharia com maestria.

O mais novo de mim não sabe ser mestre nem se convence de que possa ser algo entre chefe e alguém que pode se responsabilizar quando algo der errado. Não entendem? No meio de toda a minha frigidez, o que eu quero é que tudo se foda e se confunda e fique parecido com o que chamariam de errado só para conhecer alguma proximidade com o caos. O mais perto que eu teria de uma realização pro-fis-sio-nal em letras douradas e caligrafia de normalista seria o circo pegando fogo sem que eu pudesse assistir de fora, em que eu pudesse sentir o calor torturando a pele e participar dos gritos de desespero.

O mais velho de mim era mais dedicado intelectualmente e bem menos arrogante, mas isso eu sempre temi e previ que aconteceria. Hoje eu já não sei conjugar verbos e ainda me atrevo a me meter em oraçõezinhas com toda a minha ausência de insubordinação. Eu me escondo em linhas do tempo superficiais, finjo que tenho objetivos que não sejam um dia depois do outro enquanto penso como-quando-onde será o último e desejo como quem amarra uma fita no pulso que seja algo interessante.

Eu sei que o meu vazio é falta de empenho. Eu sei que existem histórias mais fascinantes, mais elaboradas, mais originais e, principalmente, mais bem escritas do que estas parcas que já há tanto tempo eu leio e releio. Sei que também que existem outros pronomes além da primeira pessoa do singular, mas falta um descentramento que me permita o mergulho. E falta, mais do que tudo, tomar vergonha na cara junto com o gelo do uísque que até agora sequer pode vir sem coca-cola ou guaraná.