Páginas

segunda-feira, agosto 22, 2011

Asas cortadas


Me transformando em um cisne e a dor é necessária. Tudo é necessário, perigoso, divino-maravilhoso - na música é claro. Na vida real é a pele se abrindo, a carne rasgando, os rasgos alastrando em dor insuportável. Valerá à pena? Perguntaram. Alguém respondeu com um verso escrito à caneta bic roubada e já falhando: Ritos de passagem passam; há-que passar. Parecia um provérbio antigo ou sorte de biscoito oriental. Desses que não faz sentido porque faz parecer que a nossa vida devia ser maior do que realmente é. Devia ser mais cifrável e dizível em provérbios.

E a alma? Se perguntou de que tamanho estaria agora. Teria crescido ou encolhido nesses tempos todos? Essas coisas de penas, almas e valores eram muito para ela. Eram muito à essa altura da vida quando não se tinha quase nada. Só tinha uma meia dúzia de palavras que poderiam ter sido grandes num passado, mas já lhe tinham chegado gastas e desbotadas. Não tinha muita cor nem para onde correr.

Entrou no carro esperando estradas longas, noites frescas, ventos revigorantes. Faltava dar a partida. Não tinha carteira, gasolina, mapas. Não tinha nada além das asas que cresciam discretas ferindo as omoplatas. Tinha que matar uma parte - era o que pensava enquanto saía batendo portas pequenas demais para o tamanho de sua fúria. Quis correr por dentro de uma floresta densa ou um campo aberto até as pernas obrigarem a parar. Quis sentir o pulmão vivo, ofegando, pedindo para continuar vivo, mostrando que lutaria por mais um fôlego cada vez que fosse necessário.

Do lado de fora do carro o concreto lhe sorriu irônico. Muitos carros não lhe sorriram nem expressaram nenhum sentimento, parados sobre o asfalto. Uma viatura da PM à certa distância mostrou que não teria dado certo dar a partida no carro. Também não havia para onde correr. Nenhum precipício no final da floresta imaginária.

Os pés ainda agitavam-se pedindo passos firmes, fortes, ritmados e constantes. Ou que levassem a algum lugar apenas. Qualquer lugar. Que a levassem. Já não queria estar ali tão presa no desespero tão interminável, escuro, envolvente. Caiu de desespero no chão frio. Quando percebeu, tinha uma lama pegajosa em volta. Percebeu que era ali que devia estar e a opção era descobrir que um dia as asas terminariam de crescer. Doeria muito? Demoraria muito? Perguntaram. Ninguém respondeu.

2 comentários:

  1. Ninguém nunca responde. Não sei se as perguntas viram respostas, depois de esperar. Mas não desisto.

    Amei!! Continuemos nos embriagando de palavras e rasgando as costas pra voar!
    Um beijo!

    ResponderExcluir

Sintaxe à vontade: