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quinta-feira, setembro 11, 2008

Caso dos dois velhinhos no metrô

Olhou-a. O olhar era triste e azul, quase infantil no meio das rugas brancas na pele rosada, marcas que pareciam dizer mais uma inocência doce do que os pecados e vivências que provavelmente denunciavam. Parecia mesmo uma criança chorosa implorando atenção. De uma doçura gigantesca, apesar de quase imperceptível sob aquela massa corpulenta. E ainda que ela tentasse dissimular a grandeza do homem pedindo ali, silenciosamente, clemência, a pouca distância se via e entendia-se fácil os dois: ela tentando engolir o perdão engasgado na garganta, ele implorando já por tanto tempo aquela absolvição.

A surpresa dos dois era também indisfarçável em meio àquele encontro casual. O estrondo das portas do vagão abrindo por sorte havia abafado o grito de susto que ela também rapidamente engoliu. Alguém que olhasse mais atento veria que desmoronou-se toda no chão ao ser obrigada a reviver num rompante todo aquele sofrimento dado como morto há anos. Pois viu o quanto estava viva sua memória. Do mesmo modo que seu rancor. Não admitiria nunca, mas descobrira também ali o quanto seu corpo ainda estava vivo, morreria afirmando que o palpitar de seu peito era do excesso de coisas que queriam lhe atropelar a garganta e pular em gritos de raiva pela boca. Mas não era. O seu peito explodia era por ver aquele corpo, por sentir-se acarinhada por aqueles olhinhos que, com o passar da idade, como era possível!, só se haviam tornado mais doces. Pensou se o fato daqueles olhos terem ficado ainda mais iluminados não teria alguma coisa a ver com o tamanho do monte de pecados que eles mentiam. Foi a única explicação que encontrou para se confortar e resistir ao ímpeto de dar-lhe junto com a redenção todo o resto de sua vida. Pois foi o que na verdade quis e não disse. Como tantas outras coisas que não disse ao longo dos anos, da distância e do orgulho que a impediram de procurá-lo, de voltar atrás. O orgulho besta, como se diz, que a fez derrubar as colunas de sustento da sua felicidade gritando com uma raiva passada por ódio que ele é quem as fizera ruir com sua traição.

Ao abrirem-se as portas daquele vagão transformou-se em certeza a dúvida-angústia pesando em sua cabeça todo esse tempo: como teria sido se fosse diferente. Todas aquelas tardes que passara imaginando-se ainda ao lado daquele homem, perdoado e satisfeito com ela só, pareceram-lhe o caminho certo que não escolhera. E a raiva que fingia ainda guardar dele tornou-se de si mesma. Como pudera ser tão burra! Altruísta ao ponto de abrir mão de si mesma esperando que longe dela ele se regenerasse, não acreditando no poder do amor – que julgava tão grande e forte – para fazê-lo, feito receita de bolo na fôrma de suas pernas, seu homem. Mas não, deixara o tempo passar, tempo incompetente que não soubera cuidar do seu homem como cuidaria. Tempo que enrugou a maciez de sua fôrma, de modo que agora já não confiava-se capaz de cuidá-lo como ele merecia. Ele, que depois de anos e anos, estava ali – esperando e pedindo. Ele, que diante do susto que provavelmente também experimentara, podendo optar pelo orgulho – e sabendo que se pudesse era o que ela faria – continuara pedindo e esperando.

Nisso já estava parada, em pé, nem muito perto nem muito longe, tentando fingir que não via e, se não funcionasse, que não ligava. Mas era só o pretexto para esperar passar um tempo e tomar um gole grande de coragem que lhe empurrasse todos os impropérios pro estômago e só sobrassem na garganta as verdades tão ansiosas por serem ditas. Ele fez menção de se levantar e, tão rápido quanto pode, ela pensou que, se não lhe saíssem as palavras agora mesmo, o seguiria até o infinito respirando seu ar enquanto a coragem não vinha.

Respirou o mais fundo que pôde, parecendo acreditar que nas profundezas de seu pulmão estariam guardadas as palavras perfeitas e cabíveis. Tentou recuperar alguma parte de seu prumo natural, ajeitou-se com toda dignidade que só os mais velhos conseguem ter. O trem parou. As portas se abriram. Muitas pessoas saíam ao mesmo tempo. Perdeu-o de vista. Desesperou-se vendo esvair-se novamente sua felicidade. Tentava em vão vencer a multidão vigorosa. Vendo-se incapaz, aceitou mais aquela jogada cruel da vida. O vislumbre efêmero de sua felicidade já não doía como antes. Faz tempo havia se acostumado a dor, já não se deixava ferver pelas coisas. Pareceu lógico, apesar de irônico, aquele encontro não passar de um esbarrão no passado. Como encontrar uma foto antiga durante uma faxina. Uma lembrança de quem se foi e já não é mais. Um sonho rápido do que poderia ter sido. Um tropeço qualquer que nos faz voltar a realidade e continuar arrumando a casa. No caso, esperar calmamente a multidão se dissolver e seguir o curso normal de antes. Acostumara-se em sua vida morna a seguir os dias sem pressa, a esperar a morte sem pressa, a viver as coisas uma de cada vez, saboreando cada uma em passos lentos – mais porque aprendera a respeitar a vontade do corpo já cansado do que por ter aprendido a tomar as rédeas de si mesma.

Sua conformidade foi logo dissipada pelo peito inquieto quando, ao chegar ao topo da escada, deparou-se de novo com aquele azul reluzente. Agora tão perto ao ponto de sua alma não ter tempo nem para pensar em fazer o que quer que fosse. Estendeu a mão. O maior gesto de que foi capaz. Gesto esse que dispensava todo orgulho, todas as palavras, todas as conformidades, todo arrependimento, todo o perdão. Gesto que os fazia iguais em culpa e amor. Ela o pedira de volta e ele aceitou. Perceberam-se disso no toque das mãos.

Se algo de bom o tempo havia feito aos dois fora isso: os tornara iguais. Iguais em pecado. Iguais em traição. Iguais em arrependimento. Iguais em solidão. Iguais em sabedoria. Iguais na certeza calma de saber o que queriam. Iguais na firmeza trêmula ao segurarem as mãos. E essa simetria que o fez pedir ingenuamente um naco do tempo dela sem saber que, ao oferecer-lhe a mão, ela lhe havia dado junto todo o resto de seus dias!

Um comentário:

  1. Bonito.

    Engraçado que essa semana eu tentei escrever um poema sobre velhinhos que se reencontravam no fim da vida. E não consegui, hehe. Depois te mostro o que saiu - bastante coisa, mas nada conclusivo.

    Tão bom te encontrar hoje! Brindes a nós, ao que falamos e não fazemos. E ao que fazemos também, ora bolas. Amo-te!

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